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Análise: VA-11 HALL-A: Cyberpunk Bartender Action (Switch) é um imersivo e intrigante não-game

O título desenvolvido pelo estúdio venezuelano Sukeban é um exemplar sólido de narrativa interativa multiforme digital.

Os filmes ilustram um trabalho muito romantizado dos bartenders, aqueles que, além de se posicionarem atrás do balcão dos bares e servirem os drinques pedidos pelos clientes, também acabam agindo como psicólogos que ajudam os recém-desempregados, os apaixonados não-correspondidos e os amorosamente rejeitados a desabafarem e afogarem suas mágoas entre um copo e outro de birita.


Agora, chegou a vez dos games se aventurarem um pouco no sentido de tentar simular essa curiosa função social. VA-11 HALL-A: Cyberpunk Bartender Action (Multi), por sua vez, é um representante interessante que explora as relações e condições humanas — e robóticas — utilizando essa ideia de bar apenas como fio condutor de uma imersiva narrativa com temática cyberpunk.


Nos balcões de Valhalla

A dinâmica de jogo é bem direta: o jogador assume o papel de Jill, a responsável por montar e servir os drinques do Valhalla, uma espécie de pub situado em um local chamado Glitch City, no ano de 207X. Nessa sociedade cyberpunk distópica, a corrupção e o estado de sítio são constantes e operados por um grupo de elite chamado “White Knights”.
 
O cotidiano da personagem é bem habitual: trabalhando no bar, ela recebe os clientes e simplesmente os escuta. Mais do que fazer bons drinks, o ofício acaba exigindo sabedoria no ato de ouvir o que os outros têm a dizer. Eventualmente, recebemos o pedido de uma bebida e precisamos produzi-la.


Nisso, um painel acaba tomando conta da tela e traz uma lista com as receitas dos drinques do cardápio. O papel do jogador acaba sendo o de selecionar os ingredientes que constam no menu para realizar as misturas e entregá-los aos consumidores. O que acontece é que nem sempre os fregueses são objetivos e claros no pedido, restando a nós ler a descrição e as características das bebidas e efetuar a escolha mais adequada para cada situação.

Dessa forma, torna-se estritamente importante prestar atenção nas tendências dos personagens que recorrentemente acabam dando uma passada no Valhalla. Donovan D., por exemplo, é o editor-chefe do “The Augmented Eye” e seu pedido quase sempre se resume a uma cerveja. Virgílio —uma referência ao personagem homônimo encarnado por Jim Sterling — sempre se reserva ao direito de utilizar de liberdade poética em seus pedidos e os faz de forma abstrata e pouco clara, cabendo a nós, decifrá-los.


Ao fim de cada expediente, uma contabilidade a respeito do dia é feita. Se todos os pedidos foram entregues corretamente, há um bônus financeiro somado às gorjetas e comissões de cada venda. Na sequência, entra em tela uma nova interface, que é a Jill em seu quarto, fora do horário de trabalho. Nela, é possível comprar novas decorações para o dormitório e navegar na internet, inteirando-se das notícias a respeito desse mundo decadente, lendo as discussões sobre os mais diversos assuntos em fóruns ou simplesmente acompanhando as postagens do blog de uma celebridade.
 
O título permanece nessa sequência de formatos de maneira cíclica durante dezenove dias in-game. Ao fim, a performance geral é avaliada e isso influi diretamente na conclusão, visto que o final é variável de acordo com as ações e escolhas do jogador.


“Cyberpunk Bartender Action”

Afinal de contas, o que define um game? Jogos digitais são intrinsecamente ligados à uma questão narrativa, visto que o simples conceito de duas barras se fazendo de raquete e um pixel móvel se fazendo de bola, como Pong, pode ser encarado como tal, mesmo que não haja uma cronologia de eventos, como acontece em Donkey Kong (Arcade), utilizado sempre como um exemplo original para jogos com história.
 
Entretanto, seria toda narrativa digital um jogo? O fato de um título se vender como um videogame o torna necessariamente um? Pois bem, considerando a definição do hábito de jogar como uma expressão cultural humana decorrente de nosso instinto de competição, é muito difícil de considerar VA-11 HALL-A um jogo em sua essência, assemelhando-se muito mais a narrativas multilineares.


Assim, infelizmente, fica difícil encarar VA-11 HALL-A como um videogame per se — caso contrário, também teríamos que olhar com outros olhos Black Mirror Bandersnatch, por exemplo, mesmo que este acabe contando com bem menos recursos interativos do que o objeto aqui analisado.

Apesar de tais colocações, a imersão atingida com a história corrente desse “Cyberpunk Bartender Action” — com muitas aspas, seja pela corrupção dos termos que o compõem em relação ao produto de fato, seja por ser a forma como a própria desenvolvedora o chamou — é realmente um feito. Poucos enredos consumidos de maneira virtualmente episódica me deixaram tão fissurado a ponto de me pegar pensando a respeito em horários completamente aleatórios, como no transporte público.


A apresentação em etapas daquele mundo, realizado a partir de pequenos gatilhos, como as conversas com os fregueses e as notícias lidas durante os períodos de pausa, é singular. A própria história do jogo, construída basicamente através de um balcão apenas, sem praticamente qualquer outro cenário, é um feito cuja própria colocação em prática é cada vez mais rara, mas ainda permanece interessantíssimo do ponto de vista narrativo. Nada disso é essencialmente novo, mas a forma competente como tais ideias foram aplicadas em VA-11 HALL-A tornam-no uma experiência completamente única.
 
Há ainda sua qualidade multiforme em oferecer finais diferenciados e mais completos dependendo da performance ao servir os drinques, além de pequenos interlúdios que podem seguir caminhos exclusivos de acordo com as decisões realizadas pelo jogador em determinados contextos.


É aí onde nos deparamos no principal defeito de VA-11 HALL-A: um sistema de conquistas no Switch cairia realmente muito bem. A consideração por trás de tal ponderação diz respeito justamente ao fato de o jogador encontrar esses momentos considerados secretos ao longo da campanha, sendo que seria bem útil caso fosse registrado o caminho pelo qual ele já percorreu. Isso preencheria uma lacuna em relação à sensação de recompensa, visto que haveria um estímulo por tentar pensar em alternativas a certas situações da história em vez de simplesmente apertar "A" para avançar e ver o que acontece.
 
É notável como esse empecilho não existe em versões do título para outras plataformas, fazendo com que VA-11 HALL-A no Switch seja levemente prejudicado em relação a elas. 


Atenção aos detalhes

Como constatado, a dedicação às minúcias é o que torna VA-11 HALL-A uma experiência narrativa interativa multilinear completamente sólida. Os diálogos são verdadeiramente convincentes dentro de sua proposta de um mundo completamente surreal e ultratecnológico de precárias condições de vida. Por conta disso, cada um dos personagens consegue expor sua individualidade de uma forma que vai muito além da aparência física, apenas, já que há um processo de caracterização personalizada transmitida através da forma como eles falam e se portam.
 
Outros mimos também acabam contribuindo nessa excelência do título, como é o caso dos itens da loja que podem ser comprados de acordo com a vontade (e as finanças) de Jill. As postagens da rede social danger/u, uma clara paródia dos textboards como 4Chan e Reddit e que pode ser acessada rotineiramente do quarto da protagonista, consegue emular com precisão o discurso utilizado nas postagens pelos seus usuários, por exemplo.


A cereja no bolo, por fim, são as referências à cultura popular aplicadas ao longo da campanha. Esse tipo de coisa é complicado de se colocar em prática porque elas muitas vezes acabam comprometendo a seriedade do produto, bem como acabam engolindo e tomando para si os holofotes. Contudo, é notável como elas se mostram organicamente inseridas ao ponto de não tornar VA-11 HALL-A uma sátira, como é o caso do personagem Art Von Delay, que alude tanto ao personagem George Constanza, de Seinfeld, quanto do meme que dele foi derivado.

Venezuela 207X

Curiosamente, três — Weedcraft Inc (PC), Tropico 6 (PC) e Riot: Civil Unrest (Multi) — das minhas últimas seis análises para os portais Nintendo Blast e GameBlast acabaram levantando a discussão a respeito de como os games e política podem se relacionar. Enquanto tal associação se dá de diferentes formas a partir da temática dos jogos analisados nesses casos em questão, VA-11 HALL-A também tem um envolvimento político a ser considerado.


O Sukeban, estúdio responsável pelo título, tem a Venezuela como origem geográfica. Independente de visões políticas que envolvam espectros antagônicos, a alegação dos desenvolvedores é que as experiências passadas por eles dentro de um contexto de um país pobre de terceiro mundo influenciaram na concepção do universo marginalizado retratado na história. Sobre como é possível seguir a sua vida e vendo a deterioração da sociedade provocada por quaisquer conflitos travados por entidades maiores do que os cidadãos interferindo diretamente em suas vidas.

Isso é política. Isso é sociopolítica. Isso é geopolítica. É como Tetris, que também teve sua concepção consequente de seu contexto histórico e geográfico. Esse DNA provindo de uma outra cultura própria, cujas vivências dos criadores influenciaram diretamente na elaboração do produto, agrega um valor singular a VA-11 HALL-A, tornando-o realmente único e um verdadeiro produto derivado de experiências pessoais atreladas às condições sociais humanas.


Pode fechar a conta

Da identidade visual em sprites, inspirada pelas Visual Novels que fizeram sucesso nos computadores pessoais da NEC (como o TurboGrafx-16), à trilha sonora que bebem fortemente da influência de Vangelis, VA-11 HALL-A: Cyberpunk Bartender Action é impecável. A competência dessa apresentação audiovisual acaba influenciando muito positivamente na história, que dificilmente seria tão imersiva se não houvesse tamanha competência nesses aspectos técnicos.

Dessa maneira, a avaliação final — principalmente em relação à sua nota final — fica muito mais a critério particular do indivíduo no que toca o seu julgamento do que é ou não é um jogo. Fica difícil dar um veredicto negativo para VA-11 HALL-A por conta de tudo o que foi conquistado por ele a nível de storytelling interativo. Portanto, a nota aqui atribuída diz respeito a uma visão que compreende essa excelência atingida acima dessa conceituação. Caso ainda assim queira entender o produto como um videogame por definição, basta considerar essa pontuação final pela metade.

Prós

  • Construção da narrativa;
  • Atenção aos detalhes;
  • Apelo estético que colabora na imersão;
  • Trilha sonora à Vangelis;

Contras

  • Sistema de conquistas faz bastante falta;
  • Não é bem um jogo, né?
VA-11 HALL-A: Cyberpunk Bartender Action — PC/PS Vita/PS4/Switch — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Vinicius Fernandes
Análise produzida com cópia digital cedida pela Ysbryd Games

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do Nintendo Blast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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