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Análise: Sense: A Cyberpunk Ghost Story (Switch) traz uma sólida trama obscura, mas sem inovar

Enredo mescla rasos elementos do gênero cyberpunk com conceitos do folclore cantonês para proporcionar uma envolvente aventura sobrenatural




Pode parecer estranha a mistura do futurismo característico do cyberpunk com as milenares tradições do folclore cantonês. No entanto, os dois extremos conversam muito bem para criarem juntos a atmosfera de Sense: A Cyberpunk Ghost Story. O projeto do estúdio Suzaku, que tem distribuição da Top Hat Studios e da eastasiasoft, chegou ao PC no segundo semestre de 2020. Já no início deste ano, ganhou um port para Switch.


A complexa trama sobrenatural se desenrola em Neo Hong Kong, porém rapidamente as vibrantes luzes de neon que iluminam a cidade cedem espaço para o sombrio clima no interior do conjunto de apartamentos Chong Sing. Histórias sinistras ficaram perdidas no edifício por cerca de 100 anos e será papel de Mei Lin Mak desvendar diversos dos mistérios que impedem o descanso eterno dos antigos e traumatizados moradores.

Conforme avança na campanha, o jogador será envolvido por memórias de pessoas que já morreram e terá uma curiosidade constante para seguir em frente e entender o que prende essas almas no nosso mundo. A aventura em 2.5D carrega influências de clássicos como Clock Tower e Fatal Frame. Focada na exploração e deixando a ação de lado, ela traz um ritmo que derrapa ora ou outra, mas é sempre reerguida pelo seu enredo.  

Era apenas uma noite comum

Tudo começa no metrô de Neo Hong Kong, onde Mei está a caminho de um encontro. Quando chega ao clube noturno, nota que seu pretendente se atrasou e resolve esperá-lo no bar. Entretanto, os olhos biônicos da garota dão defeito e ela vai para o banheiro tentar resolver o problema. Com a situação aparentemente normalizada, Mei retorna pela mesma porta de onde veio e percebe algo bizarramente diferente.
O metrô de Neo Hong Kong
A agitação da balada simplesmente sumiu e a jovem se encontra em um local sinistramente silencioso. Se quiser escapar e voltar para o seu próprio universo, terá que explorar o prédio de vários andares e lidar com incontáveis fenômenos sobrenaturais. É neste ponto que Sense: A Cyberpunk Ghost Story passa a brincar com a realidade e disparar na direção do jogador histórias cada vez mais perturbadoras.
 
Será necessário andar por todos os cantos do conjunto de apartamentos Chong Sing e encontrar itens que detalham a vida dos ex-moradores. A jornada progride e se torna complexa por meio de diários, jornais e outros pedaços de papel coletados ao longo de toda a gameplay. É fundamental ler todo esse material (ou boa parte dele, pelo menos) para conseguir entender, de fato, o que está acontecendo naquele edifício.
Muitos espíritos ficaram presos no conjunto de apartamentos Chong Sing
Caso contrário, o título acaba se transformando em um simples “pegue um item que abre a próxima porta, para coletar outro objeto que dará acesso a uma nova área, e continue assim até o final”. Compreender as aflições dos fantasmas é parte fundamental da experiência e um problema que pode afetar o público brasileiro é o fato de o jogo não contar com localização para o português — estando disponível somente em inglês.
 
Além do conteúdo escrito, a trama evolui com pequenas histórias em quadrinhos que aparecem com frequência. Sempre bastante interessantes, e algumas com elevados níveis de gore, as imagens conseguem desenvolver a personalidade de Mei de modo muito perceptível. A garota praticamente não fala nada, mas suas expressões nas cutscenes dizem muito mais do que qualquer palavra.

Homenagens para os mortos

Para libertar as almas dos antigos moradores, Mei precisará criar santuários com homenagens para esses espíritos. Nesses pequenos altares, além de oferendas, ela terá que colocar fotos deles em vida e também itens relacionados com as aflições dos fantasmas. Isso faz de Sense: A Cyberpunk Ghost Story, uma aventura focada quase exclusivamente na exploração de ambientes e com pouquíssimas sessões de ação.
 
Apesar de o foco estar na investigação do prédio, alguns elementos acabam quebrando o ritmo da campanha. A principal falha está na mecânica que “bloqueia” itens aparentemente sem função. Por exemplo, a garota encontra um cadarço que pode servir de corda — algo bastante útil em um prédio abandonado. No entanto, só será possível coletá-lo se o jogador interage com certa situação em que o objeto se revela necessário.
Itens estão espalhados por todo o edifício
Assim, quando Mei acha um termômetro preso nas grades do lado de fora da janela, é preciso se lembrar do local onde o cadarço estava e voltar até lá para coletá-lo. Algumas vezes, principalmente na primeira metade do game, esse vai-e-vem faz a personagem subir e descer pelos andares diversas vezes. As andanças desnecessárias fazem a aventura alternar momentos de empolgação com caminhadas cansativas.
 
Outro fator que quebra o ritmo da exploração é o excesso de telas de carregamento. A maioria dos andares tem três corredores que dão acesso aos apartamentos. Ao passar de um corredor para o outro, o loading aparece. Em algumas situações, é necessário “enfrentar” até cinco dessas telas para simplesmente ir de um apartamento até outro no mesmo andar. O tempo de espera é ainda maior quando a garota precisa do elevador.

Tente outra vez

Há poucos inimigos espalhados por Chong Sing, mas isso não significa que a jornada será simples. O game conta com um interessante sistema de armadilhas que pune o jogador mais desavisado. Por exemplo, em determinado ponto é necessário colocar a mão dentro de uma pia. Mas, o triturador de lixo está ligado e detona o braço da personagem — rendendo uma das histórias em quadrinhos mais sangrentas.
 
Quando isso acontece, é game over e será necessário voltar para o último ponto de salvamento. Há alguns checkpoints automáticos ao longo da campanha, mas eles são espaçados entre si. Ora ou outra, é recomendável salvar o progresso manualmente usando uma fita cassete. Esses itens são limitados, o que gera uma dúvida sobre consumi-los ou não. É melhor salvar agora ou será que consigo avançar um pouco mais?
"Não acredito que esqueci de salvar manualmente"
Colabora para criar essa confusão o fato de que qualquer vacilo vai comprometer (e muito) o seu progresso. Por mais de uma vez, perdi em torno de 20 minutos de gameplay por tomar uma decisão errada e ter que voltar para um ponto de salvamento bastante defasado. Com isso, precisei de cerca de oito horas para concluir a aventura que pode ser encerrada em torno de quatro horas e meia para quem conhece todo o caminho.

Um estranho visual

Sense: A Cyberpunk Ghost Story mescla cenários em 3D com sprites 2D dos personagens. A combinação funciona, mas o visual geral do game é prejudicado pelas animações. Mei se movimenta de maneira extremamente estranha, confesso que precisei de bons minutos para conseguir me acostumar com os braços e pernas dela se mexendo como se houvessem parafusos nos joelhos, cotovelos e todas as demais juntas.
Animações de Mei são estranhas
Essas animações até que combinam com os fantasmas, mas se tornam bem bizarras na protagonista. Por outro lado, praticamente todos os NPCs — principalmente aqueles nas ruas de Neo Hong Kong — são figuras estáticas. Isso passa a impressão de que andamos por uma cidade de papelão. Até mesmo as almas penadas parecem mais “vivas” do que os habitantes da cidade cyberpunk.
 
O port para Switch também apresenta problemas técnicos, com quedas de fps muito bruscas em certos ambientes. Em determinada situação, o game ficou quase injogável, rodando com menos de 10 quadros por segundo. Além disso, as texturas dos ambientes e o modelo de Mei estão com qualidade reduzida em comparação com a versão do PC. A protagonista fica muito borrada, principalmente quando a câmera se aproxima dela.
Comparativo da versão de PC (esquerda) com o port do Switch (direita)

Um pouco mais de terror

Uma das minhas frustrações com o título está no nível de “terror”. Há sim algumas cenas e situações que causam perturbação, mas nada que me fizesse sentir medo. Pela temática abordada, existia espaço para explorar essa sensação de inquietação. Houve somente um momento que causou calafrios na minha espinha, ou seja, os desenvolvedores sabiam brincar com esses sentimentos, mas acabaram não fazendo isso.
 
Até pela ausência dos sustos, não me senti muito atraído pelo New Game+ — liberado logo após encerrarmos o jogo pela primeira vez. A segunda experiência promete ser mais difícil (removendo os pontos de salvamento automático) e oferecer conteúdo inédito. Além disso, o pós-game conta com um epílogo de cerca de 10 minutos que vale a pena ser jogado e fecha algumas das pontas que ficaram soltas.
Game desperdiça o potencial de ser mais assustador

A falta de ousadia

O game cumpre aquilo que se propõe a fazer, ou seja, oferece uma aventura sobrenatural aos moldes de clássicos do passado. Porém, faltou um pouco de ousadia para inovar a apresentar algo realmente novo. Há potencial para uma possível sequência, talvez explorando um pouco mais da tecnologia do gênero cyberpunk para lidar com os fenômenos fantasmagóricos. Além da ausência de novidades, o principal problema são os visuais e animações estranhas.
 
No entanto, o level design bem planejado (com exceção dos itens “bloqueados”), os puzzles que geram excelente nível de desafio e a história bastante envolvente fazem os aspectos positivos do jogo se sobressaírem em cima dos negativos. Sense: A Cyberpunk Ghost Story tem foco total na exploração e narrativa, e é exatamente nesses dois quesitos em que a jornada sobrenatural de Mei atinge o seu ápice.

Prós

  • Trama bastante complexa e envolvente;
  • Limitação na quantidade de salvamentos cria um bom desafio extra;
  • Ótimas cutscenes em formato de quadrinhos;
  • Puzzles muito inteligentes;
  • Quesito exploração se destaca no gameplay.

Contras

  • Animações estranhas;
  • Port para Switch com alguns problemas técnicos;
  • Mecânica de itens “bloqueados”;
  • Excesso de telas de loading prejudica o ritmo do jogo;
  • Ausência da localização para o português pode prejudicar a experiência.
Sense: A Cyberpunk Ghost Story — Switch/PC— Nota: 7.0
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: João Gabriel Haddad
Análise produzida com cópia digital cedida pela eastasiasoft

É jornalista e obcecado por games (não necessariamente nessa ordem). Seu vício começou com uma primeira dose de Super Mario World e, desde então, não consegue mais ficar muito tempo sem se aventurar em um bom jogo. Diretor de Redação do Nintendo Blast.
Este texto não representa a opinião do Nintendo Blast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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