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Análise: Loop Hero (Switch) é um criativo e nostálgico RPG com proposta única de rogue-lite

Um RPG sombrio, com pixel art estilo 8-bit e alta inovação em rogue-lite, com aplicações bem interessantes de construção de baralho.




Desenvolvido pelo estúdio russo Four Quarters e publicado pela Devolver Digital, Loop Hero é um peculiar RPG de estilo rogue-lite (ou “roguelike-like”) com uma dinâmica espacial automática e cíclica e uma progressão de gameplay repleta de elementos de jogos de construção de baralho (Deck-building game).


A proposta do estúdio russo com esse título foi a de oferecer uma experiência que tanto prestasse homenagens estéticas a RPGs de PC da década de 1980 quanto desenvolvesse uma fórmula inovadora de rogue-lite com elementos de construção de baralho e com um level design de dungeon procedural, simples e circular, porém desenhado de tal forma a ser repetitivo sem ser desestimulante, engajando o jogador em um progresso fora da rotina da dungeon.

No final do dia, Loop Hero se sai muito bem nessa proposta, e está bem adaptado ao híbrido da Nintendo, inclusive à tela de toque, mas também possui falhas que podem incomodar na apreciação de sua fórmula.



Uma narrativa com uma boa e velha premissa, mas com uma execução questionável

Quando o gênero roguelike começou, a partir de Rogue, de 1980, os jogos desse tipo costumavam ter maior foco em combate, diferente de RPGs como os da série Ultima, naquele tempo, com grande visibilidade também no enredo. Havia uma forte razão para isso: um roguelike envolve, entre outros fatores, morte permanente (em sentido estrito). Isso significa que, após a morte do protagonista ou do grupo de personagens (party) controlada pelo jogador, a trama do título é reiniciada junto com tudo o mais que o jogador tenha obtido em sua aventura até aquele momento.

Nos últimos anos, os roguelites (ou também chamados “roguelike-likes”), ou seja, jogos inspirados em roguelikes que misturam tendências de outros gêneros, têm desenvolvido designs narrativos específicos que combinam (tem “consonância ludo-narrativa”) com um estilo de gameplay cíclico.




Nesses casos, a estratégia de enredo costuma girar em torno de ressignificar o conceito de “morte”, onde a morte em uma expedição ou run significa reiniciar sua jornada na dungeon desde o início, mas não necessariamente nas mesmas condições, podendo haver progresso permanente do personagem ou personagens controlado(s) pelo jogador, o que tem impacto direto na história.

Um exemplo notável de design narrativo nesse sentido foi o de Hades, da Supergiant Games, em 2018, e, anos depois, Loop Hero, inicialmente lançado para PC, procurou também fazer um roteiro que fizesse sentido com sua jogabilidade cíclica, onde o jogador reiniciaria várias e várias vezes sua expedição na dungeon, a qual também, por sua vez, possui uma dinâmica cíclica.




Acontece que Loop Hero, mesmo que com um texto coerente com seu gameplay, possui uma narrativa muito simples que, ainda que cumprindo a função de dar um contexto sombrio e de mistério, engaja pouco o jogador em relação ao fluxo da trama e ao elenco de personagens.

O jogo possui um pano de fundo pós-apocalíptico. Nos diálogos iniciais, é explicado que um ser maligno destruiu tudo o que havia. O jogador controla um amnésico aventureiro (o herói do loop) que acorda em um pequeno acampamento e sai para tentar reconstruir seu mundo e suas lembranças do que há e do que um dia existiu. Conforme a rotina de gameplay, sempre que ele é derrotado, desperta no acampamento, podendo também retornar por sua própria conta para ele durante a jornada.

Durante suas expedições, e também a cada vez que retorna ao acampamento, o herói pode encontrar outros sobreviventes (em geral, sem nomes) que lhe podem dar mais informações do vago contexto do mundo em que está, além de terem impacto na progressão do gameplay. A trama (que se desenrola em cerca de 15~20 horas) é dividida em quatro capítulos, cada qual rendendo muitas expedições, pouquíssimas e incidentais linhas de diálogo e um chefe. Mas há ainda um chefe secreto que guarda o “final verdadeiro” do jogo.



Uma estética simples, nostálgica e monótona

Uma das virtudes de um bom jogo de baixo orçamento é a de saber justificar escolhas de design simples com base em uma homenagem ou filosofia de design. Outra virtude é conseguir criar uma identidade visual única atualmente mesmo com maiores limitações gráficas. Jogos como The Return of the Obra Dinn e Cuphead — ambos disponíveis em Switch — são exemplos inquestionáveis de jogos indies que, cada um a seu modo, conseguem fazer ambas as coisas. E Loop Hero, embora em menor grau, também consegue.

O jogo utiliza visão aérea com gráficos extremamente simples de pixel art análogos a jogos 8-bit dos PCs da década de 1980, mas com uma pixel art bela e mais detalhada para os perfis dos personagens. O ambiente é um encontro entre o sombrio e o minimalismo, o que se faz ver pelo estilo sério do design dos personagens, pelas criaturas demoníacas das dungeons, pelas cores escuras, pelos elementos pós-apocalípticos em geral e pela direção de som que dá aspereza aos pixels.




Mesmo que aceitemos a premissa da simplicidade gráfica, pode-se objetar que o jogo nem sempre traz boas soluções, dentro das limitações a que se colocou, para tornar cativante o mundo e seus personagens. O protagonista, por exemplo, resume-se a uma forma branca praticamente estática no cenário da dungeon, ganhando um mínimo de personalidade somente nas batalhas, onde é possível reconhecer sua classe, mas, de modo suficientemente personalista, apenas o perfil identifica-o como um personagem único.

Outro exemplo é o acampamento, onde sequer os personagens são representados diretamente, resumindo-se a uma representação das localidades lá simuladas (forja, fazenda, cozinha etc.). E também as dungeons poderiam ter maior variedade em sua estrutura de design, conforme o passar dos capítulos.

A direção de som, por sua vez, faz um excelente trabalho com efeitos sonoros em um estilo retrô para grunhidos e outros sons que contribuem para uma atmosfera sombria e ameaçadora, especialmente durante as batalhas, e é incrível o quanto é eficaz, mesmo com gráficos tão simplistas. Por outro lado, a harmonia e as melodias, embora funcionais e coerentes com a estética do jogo, não são nem marcantes nem particularmente elaboradas.



Um roguelite inovador e mais estratégico do que possa parecer

De modo geral, os RPGs costumam possuir duas facetas de gameplay. Por um lado, uma dinâmica de exploração e interação em calabouços e/ou no mundo exterior (cidades etc.); por outro, o combate (em tempo real ou não), com grande variação de sistemas de batalha. Apesar de alguns RPGs serem focados em combate, como a série Diablo, ou Dungeon Encounters (Switch), como analisado recentemente (Novembro), ainda continuam tendo uma forte dinâmica de exploração. Curiosamente, Loop Hero, não.

O jogo da Four Quarters traz um RPG sem dinâmica de exploração ou interação. Isso acontece porque o personagem move-se sozinho, em ritmo uniforme, no cenário da dungeon de cada capítulo, o qual sempre é gerado de modo procedural, invariavelmente consistindo de um breve caminho cujo fim se encontra com o começo (o local onde está a aldeia do herói), e é totalmente revelado logo de partida.




O combate, apesar de poder ser considerado em tempo real pausável, não é executado tal qual em CRPGs como nas séries Baldur’s Gate e Dragon Age, isso porque, diferente dessas séries, as ações ofensivas em Loop Hero, e até o uso de poções do personagem, são automatizadas, bem como suas habilidades são passivas. Quando muito, o jogador pode intervir durante um confronto ao redirecionar o alvo a ser atacado ou ao trocar um equipamento, mas a troca (dentro ou fora de combate) implica descartar para sempre o item anteriormente equipado.

Essas escolhas ousadas de automatismo em um RPG limitam a experiência do gênero e também as possibilidades de estratégia, especialmente em combate, mas o jogo sabe compensar isso tudo muito bem no gerenciamento da economia externa do gameplay, ou seja, não na economia interna (administração de quando usar habilidade, poção etc.), mas sim na administração do que colocar no cenário, podendo gerar obstáculos, intervenções no ciclo dia-noite, locais que geram inimigos, pontos de recuperação de vida, entre outras coisas.


A cada confronto dentro de uma dungeon, o jogador obterá cartas para gerenciar essa economia externa. Há uma carta para cemitérios, que ressuscitam inimigos e periodicamente invocam esqueletos; para pontos de iluminação que diminuem na área a quantidade de inimigos máximos por bloco; e muitas outras coisas, além de cartas de montanhas, rochas, cofres e outras coisas que formam o fundo do cenário e dão recursos para o jogador.

Esse tipo de design passa a ficar interessante com seus elementos interativos. Por exemplo: a cada certa quantia de montanhas que colocar no jogo, aparecerá um acampamento de inimigos goblins; e uma mansão mal assombrada, quando colocada junto a uma aldeia,  pode se tornar, dali a três voltas na dungeon, um condado, onde o jogador pode recuperar um pouco de vida ao passar.




Algumas cartas também só podem ser colocadas em circunstâncias específicas. Plantações de trigo, por exemplo, só podem ser colocadas de modo adjacente a aldeias. E há também algumas interações não-determinísticas. Por exemplo: às vezes pode acontecer de uma aldeia gerar em sua proximidade um grupo de bandidos que pode saquear o jogador ao passar.

A expedição acaba quando o jogador morre ou quando retorna ao ponto de início (seu acampamento) e resolve sair da dungeon. No primeiro caso, perderá boa parte dos recursos coletados, no segundo caso, volta com tudo que conseguiu. Durante as expedições, que podem levar muitas e muitas voltas desde o acampamento, é possível acelerar o tempo em até 4x, para tornar menos cansativo, mas às vezes a velocidade ainda não é alta o bastante.


Depois que a expedição acaba, os itens coletados (madeira, rocha, couro etc.) vão para a economia do acampamento principal, onde podem ser empregados para construir uma forja, uma fazenda, uma cozinha e algumas outras coisas. Cada qual com repercussões do gameplay durante as dungeons, por exemplo, ao dar equipamentos ao jogador, recuperar mais sua vida quando passar pelo bloco do acampamento, e muitos outros efeitos possíveis.

Ainda no acampamento, é possível liberar outras classes para o jogador, como Rogue e Necromancer. Também pode-se administrar o baralho de cartas para as dungeons, além de melhorar as construções já existentes no acampamento. Inicialmente, pode parecer uma boa variedade para a jogabilidade, mas o jogo traz poucas novidades mecânicas no decorrer do tempo, podendo se tornar desgastante.



Um RPG único e elegantemente bem-feito

Loop Hero não tem gráficos deslumbrantes, mas seu visual certamente soará nostálgico àqueles que viveram a era 8-bit, e neste projeto se manteve bem funcional para a estrutura simples em que o jogo entrega, com excelência, um gameplay automatizado com cenário circular de tela única com ênfase em gerenciamento da economia externa da aventura do personagem.

Apesar de algumas limitações, o jogo pensa muito para fora da caixa do que é ser um RPG, talvez o título mais inovador em adaptação de mecânicas de construção de cartas desde pelo menos Slay the Spire, e ainda conserva a essência da evolução do personagem em elementos de D&D, como classes e estratégias relacionadas a efeitos negativos/positivos, vida, evasão, equipamentos etc.

Por fim, Loop Hero chegou muito bem adaptado ao híbrido da Nintendo, sendo útil o toque na tela, em modo portátil, e a possibilidade de jogar em qualquer lugar um jogo nesse estilo automatizado e, ao mesmo tempo, reflexivo. Trata-se provavelmente de um dos melhores rogue-lites disponíveis na plataforma, e talvez o melhor entre aqueles que conservam uma estrutura de RPG. O título é altamente recomendável para quem estiver atrás de uma experiência diferente e inovadora em RPG, construção de baralho e/ou em rogue-lite.

Prós
  • Razoável coerência ludo-narrativa em estilo rogue-lite;
  • Visual nostálgico e bem funcional;
  • Uma boa atmosfera audiovisual sombria e minimalista;
  • Gameplay bem-feito, inovador e criativo de rogue-lite com construção de baralhos;
  • Bem adaptado para o modo portátil.
Contras
  • O jogo engaja pouco com relação ao enredo e aos personagens;
  • Mesmo dentro das limitações da proposta gráfica, o visual às vezes carece de maior personalidade;
  • Mesmo como rogue-lite, o gameplay tende a ficar tedioso depois de um certo tempo, pelo automatismo, pela falta de novidades mecânicas, pelo level design monótono e pela aceleração insuficiente.
Loop Hero — PC/Switch — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Icaro Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Devolver Digital

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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