Analógico

Kirby and the Forgotten Land (Switch): repensando a dificuldade como elemento artificial de design

Será que o desafio dos jogos se resume à dificuldade?

Um dos elementos fundamentais dos jogos é o seu desafio. Usualmente atrelado a esse termo, temos o conceito de dificuldade. O tema surge muitas vezes ao pensarmos em videogames cuja barreira de entrada é mais alta, seja com títulos clássicos como Ninja Gaiden e muitos outros do NES ou com obras modernas como as da franquia Souls, da From Software. Porém, será que não existem outras formas de pensar esse conceito para além dessa ligação?

Kirby sempre foi uma franquia que trabalhou na perspectiva de oferecer um jogo-base fácil. Porém, isso não significa que as suas obras não pensem em outras formas de propôr desafios em seu design. Com Kirby and the Forgotten Land, não temos uma exceção. Mesmo a modalidade mais difícil ainda oferece uma dificuldade baixa se comparada a outros exemplares do gênero. Neste sentido, este texto busca utilizá-lo como um exemplo para discutir as possibilidades de desafio nos jogos e a artificialidade da implementação de dificuldades.

O papel do desafio nos jogos

Antes de pensar sobre o que significa a dificuldade, gostaria de primeiro discutir o que é um jogo. Ao pensar sobre a perspectiva social dos jogos (na época não digitais), Johan Huizinga afirma em seu livro Homo Ludens, de 1938, algumas características que ele considera essenciais. Para o historiador holandês:

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. (HUIZINGA, 1999, p.16)

Dentro dessa definição, Huizinga destaca um elemento em particular de tensão. Enquanto os participantes do jogo (os jogadores) seguem uma série de regras, o resultado positivo ou negativo de suas ações é incerto. Quem joga põe à prova algumas de suas virtudes: força, destreza, reflexos, capacidade de planejar e se organizar.

São as regras que definem os objetivos que o jogador deve perseguir. É por conta delas também que temos a atribuição de valores para os resultados. Conseguir mais pontos do que o adversário ou cair em um abismo em um game de plataforma só tem sentidos positivos ou negativos pela definição das regras do jogo.

No artigo The Game, The Player, the World: Looking for a Heart of Gameness, Jesper Juul frisa que esse aspecto das regras e da incerteza do resultado também é destacado por vários outros autores. Roger Caillois fala sobre a incerteza dos jogos, Bernard Suits destaca a definição de métodos eficientes, e Avedon & Sutton Smith aponta a produção de um resultado em desequilíbrio. Também é possível observar tópicos relacionados na discussão de Chris Crawford, David Kelley e Katie Salen & Eric Zimmerman.

A partir das definições desses autores, Juul busca destacar seis características particularmente relevantes para a definição de jogo. A primeira delas é a presença de regras fixas. No contexto de jogos digitais, é fundamental que elas sejam claras tanto para o projeto ser programável quanto para que o usuário não tenha dificuldade para jogar.

O jogador precisa entender que deve andar para a direita e pular e as consequências dessas ações.

A segunda característica é a presença de resultados variáveis e quantificáveis. Isso significa que é importante que haja condições de vitória e derrota bem-definidas. Há aqui duas situações que podem ser bastante problemáticas: a ausência de clareza sobre o que constitui vitória e derrota; e o total domínio de um jogo que é capaz de fazer o resultado ser sempre uma vitória sem tensão. Isso se encaixa também na terceira parte da definição, que implica na necessidade de que os resultados sejam valorizados de forma diferente; ou seja, há um (ou mais) deles que é ideal ou mais desejável do que os outros.

Para alcançar esses objetivos, é fundamental o esforço do jogador, que entra como quarta característica. É importante que as ações do usuário tenham impacto no resultado. Isso não significa que necessariamente a pessoa que se esforça mais deve vencer, mas esse investimento de tempo e energia se reflete na performance do jogador a longo prazo.

Dependendo do resultado, o jogador tenderá a se sentir feliz ou triste. Essa reação emocional também é um aspecto que Juul destaca sobre a relação entre as pessoas e os jogos. Por fim, o autor também destaca a possibilidade de consequências opcionais negociáveis, pensando em situações como jogos de azar ou a perda de amizades jogando Mario Party.

Ao pensar na questão do desafio em jogos, um ponto específico vem à tona: a dificuldade. Apesar de parecer ser exatamente a mesma coisa, a aplicação do termo “dificuldade” em videogames é muito mais restrita e artificial, e não dá conta de todas as possibilidades do termo.

A diferença entre dificuldade e desafio

Ao pensar sobre o conceito de desafio, Brandse e Tomimatsu afirmam que há um equívoco comum de considerar que o termo é sinônimo de dificuldade. Essa associação acaba desconsiderando que jogos diferentes oferecem desafios muito diferentes. Um RPG baseado em turnos e um FPS normalmente exigem habilidades muito diferentes de seus jogadores, por exemplo.

A partir desse pensamento dos autores, vou um pouco além. A redução do desafio a “jogo fácil” e “jogo difícil” nos faz ignorar um aspecto central do design dessas experiências. Nesse sentido, a franquia Kirby é uma excelente forma de destacar as diferenças entre os dois termos.

É inegável que as aventuras de Kirby são compostas por plataformas com muitas fases bem fáceis. Kirby and the Forgotten Land não é exceção à regra, e mesmo a opção de dificuldade mais alta (Wild Mode) só exige esforço do jogador em sua reta final. Porém, a questão que realmente sempre foi central para a franquia é que o desafio estava em outro lugar.

Nos acostumamos a pensar em desafio em função apenas da força dos inimigos que devemos enfrentar. Porém, ele também está atrelado à questão das regras, objetivos e resultados que são considerados positivos ou negativos. Nesse sentido, o real desafio de um jogo está, a meu ver, mais em seu design como um todo do que no modelo atual de dificuldade, que muitas vezes se resume ao ajuste de parâmetros de força de aliados e inimigos.

A experiência que a série Kirby sempre propôs valoriza mais a exploração, o senso de aventura e o complecionismo. Em vez de apenas avançar pelas fases, Kirby quer incentivar o jogador a mergulhar de cabeça e fazer tudo o que é possível. Afinal, a facilidade e até mesmo uma variedade de guias visuais ajudam na sensação de que conseguir fazer tudo está logo ali a um passo de distância.

Mais do que valores arbitrários de força (apesar de ter alguns chefes de alta dificuldade), essa curva de aprendizado é o grande forte da franquia. O início dos jogos é especialmente fácil e o design faz com que o jogador sinta aos poucos o gostinho de encontrar os elementos escondidos. Esse ritmo de desafio bem-pensado é profundamente gratificante.

Em Kirby and the Forgotten Land, é bem clara a forma como o design inicial das áreas é pensado como uma forma de tutorial. Os cenários contêm dicas visuais óbvias justamente para que o jogador tenha uma associação mental para a exploração. No caso de Forgotten Land, cada área possui quatro missões ocultas que só são descobertas explorando a fase ou terminando-a (uma por vez).

O pós-game testa o aprendizado do jogador enquanto também aumenta a dificuldade.
Aos poucos esses aspectos vão se tornando menos triviais, até chegar às áreas do pós-game. Nelas, esse aprendizado de exploração é colocado à prova em versões remixadas das fases com maior dificuldade. As áreas possuem colecionáveis importantes e alcançá-las pode ser mais complicado que nas fases principais.

Da mesma forma, ao pensar sobre o design dos chefes, o mais interessante não é sua grande força, mas sim os padrões de seus ataques. Para lidar com esses golpes, o jogador precisa não apenas aprender e memorizar o ritmo da batalha, mas também conseguir realizar os movimentos no timing adequado, o que demanda reflexos.

Uma chance para pensar além

De forma geral, Kirby and the Forgotten Land é um bom exemplo de por que pensar puramente no desafio em termos de dificuldade é uma mentalidade muito redutora. A facilidade ou dificuldade da obra não implicam na qualidade do design e da experiência proposta. Minha experiência com o jogo e com a franquia Kirby em geral me ajudou a enxergar que há uma nuance entre o que concebemos usualmente como dificuldade e o que é realmente o design do desafio.

Referências bibliográficas:

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

JUUL, Jesper. The game, the player, the world: Looking for a heart of gameness. Plurais Revista Multidisciplinar, v. 1, n. 2, 2010. Disponível em: <https://www.revistas.uneb.br/index.php/plurais/article/view/880/624>. Acesso em: 24 abr. 2022.

BRANDSE, Michael; TOMIMATSU, Kiyoshi. Empirical review of challenge design in video game design. In: International Conference on Human-Computer Interaction. Springer, Berlin, Heidelberg, 2013. p. 398-406. Disponível em: <https://rdcu.be/cL07G>. Acesso em 24 abr. 2022.

Revisão: Davi Sousa


é formado em Comunicação Social pela UFMG e costumava trabalhar numa equipe de desenvolvimento de jogos. Obcecado por jogos japoneses, é raro que ele não tenha em mãos um videogame portátil, sua principal paixão desde a infância.
Este texto não representa a opinião do Nintendo Blast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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