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Análise: Gerda: A Flame in Winter (Switch) é uma ficção histórica interessante, mas não muito polida

O adventure passa-se durante a Segunda Guerra na Dinamarca e coloca o jogador diante de dilemas éticos interessantes e concretos.


Desenvolvido pelo estúdio indie dinamarquês PortaPlay, sob a direção de Hans Von Knut Skovfoged, e distribuído pela Dontnod Entertainment (publicadora de Life is Strange e Tell Me Why), Gerda: A Flame in Winter é um adventure com algumas mecânicas de RPG de mesa (TTRPG) ambientado na dinamarca durante o período da Segunda Guerra Mundial. O título se propõe a trazer imersão em eventos baseados em fatos reais da região ao mesmo tempo em que coloca o jogador em dilemas éticos próprios desse contexto dramático.

Uma narrativa bem contextualizada, bem motivada e com uma execução razoável

Escrita por Ida Broni Christensen e Damir Omic, a história protagoniza Gerda, uma mulher de 25 anos com dupla nacionalidade (alemã e dinamarquesa) que trabalha como enfermeira e vive com o marido em uma pequena vila da Dinamarca. Tudo se passa no período da Segunda Guerra, entre 1939 e 1945, mas em uma região da Europa cuja realidade não é tão abordada em livros de história geral, e com uma sensibilidade para a complexidade da situação para pessoas das duas nacionalidades.

A trama é contada, às vezes, por narração dublada (dinamarquês/inglês), como nos momentos da escrita do diário da protagonista, mas geralmente se dá por meio de caixas de texto sem voice acting. A progressão se dá mediante várias escolhas narrativas durante capítulos em locais e datas específicas, e no final de cada capítulo há escolhas metanarrativas na ocasião da escrita do diário.


Gerda tem uma vida aparentemente tranquila com seu marido dinamarquês, e possuem planos para o futuro, mas tudo muda quando as investidas alemãs no continente europeu passam a influenciar os países nórdicos, o que desemboca em uma invasão na Dinamarca pela Alemanha Nazista. A tensão entre civis alemães e dinamarqueses cresce, e há uma organização de resistência local contra os nazistas.

O marido de Gerda une-se secretamente à resistência, mas sua esposa só descobre no pior momento, quando o esposo é pego pela polícia nazista (Gestapo). A partir de então, Gerda passa por muitos dilemas éticos para conseguir proteger a si mesma e a seus entes queridos (inclusive seu marido), podendo conquistar ou perder confiança de diferentes personagens no decorrer de sua história.


As escolhas de Gerda, em relação aonde ir, ao que explorar e ao optar dizer, podem beneficiar à resistência ou aos nazistas, bem como podem ter influência sobre outros personagens no elenco que não estão nem de um lado nem de outro. Os finais e muitas cenas no meio da trama variam conforme as escolhas, mas de todo modo acabará sendo uma história bastante dramática e que envolverá sacrifícios.

O enredo consegue comunicar bem os problemas da Segunda Guerra na região, especialmente em relação às tensões sociais fora dos grandes centros urbanos. E o design narrativo ramificado é interessante, baseando-se não apenas em árvores de diálogos, mas em sorte, aptidões que a personagem desenvolve e em escolhas de exploração.

Contudo, nem sempre o roteiro se desenrola de forma verossímil, principalmente por conta da atuação dos personagens, acompanhada de gestos muito rígidos e alguns trechos de diálogo com desfechos apressados. Ademais, sabe-se artificiosamente a priori a nacionalidade dos personagens, alguns dos quais tendem a ser desenvolvidos de forma breve e fugaz, de modo a dificultar que o jogador crie um elo maior com eles. Esses fatores prejudicam o impacto de alguns dilemas éticos.

Gameplay acessível e eficiente

Diferente dos jogos anteriores da PortaPlay, também ambientados durante as duas grandes guerras, Gerda: A Flame in Winter não possui mecânicas de RPG tático, mas sim de RPG de aventura, cujo game design foi liderado por Shalev Moran. Desse modo, os elementos de RPG limitam-se à exploração e à interação textual, especialmente a status, inventário e lances de dados para efeitos de escolhas em árvore de diálogo.

Esses mecanismos, que ajudam a tornar a narrativa mais interativa, são introduzidos sempre de forma didática e bem acessível para o público geral de adventure, e mostram-se eficientes para fornecer uma narrativa com variações para os dilemas propostos. Ao mesmo tempo, essa escolha de design contribui para uma experiência progressiva, onde vemos um acúmulo de aprendizados da personagem, o que agrega na proposta da obra.


Por outro lado, com exceção das escolhas em texto, os demais elementos interativos são pouco refinados. O status da protagonista limita-se às aptidões de “compassion”, “insight” e “wit”, e nem sempre é claro quando uma ou outra é útil para o trajeto que o jogador quer seguir. Mas é interessante a proposta de poder metanarrativamente avaliar os acontecimentos do dia no final de cada capítulo, repercutindo em aptidões mentais.

Por sua vez, o inventário serve para guardar itens encontrados ao longo da jornada com a esperança de que venham a ter alguma utilidade no futuro. Por fim, a exploração dá-se em um level design muito limitado e fechado, além de ter pouca variedade de cenários.

Uma boa direção de arte, mas com um audiovisual mal acabado

Com direção de arte de Caroline Fangel, o jogo opta por um estilo chamuscado e modelos poligonais minimalistas. Junto com diferentes ângulos de câmeras fixas (geralmente aérea), o trabalho de cores, o blur e a saturação dão uma vitalidade e um aspecto de miniatura ao realismo arquitetônico do contexto histórico, bem como são eficientes para estilizar um adventure de baixo orçamento. Mas a proposta artística foi pouco desenvolvida e polida em alguns aspectos.

Primeiramente, embora o estilo dos cenários seja charmoso, a cenografia é muito restrita espacialmente, além de pouco orgânica em relação aos personagens em cena, o que limita demais a exploração do jogador e também prejudica a experiência de momentos de stealth. Em segundo lugar, o estilo poligonal simplista adotado para os personagens tornou-os genéricos e pouco expressivos, especialmente em rosto.


Os retratos dos personagens em caixa de diálogo geralmente carecem de personalidade, tornando-os pouco marcantes durante a interação textual, embora sejam suficientemente adequados para os papéis que desempenham no roteiro. Do ponto de vista da animação, os personagens possuem uma movimentação pouco maleável e simples, quando não completamente ausente.

Vale destacar ainda que a iluminação, embora ajude na beleza de alguns cenário, às vezes é muito carregada, atrapalhando a visibilidade, e o sombreamento não é bem-feito. Por fim, com certa frequência há bugs onde os personagens andam mesmo “parados” (com o corpo estático).


O design de som e a trilha sonora, sob os cuidados de Jakob Støvring Hansen, também têm seus problemas. Apesar de a dublagem ser boa, ela é pouco presente para além da narração da protagonista em seu diário, e não há muita riqueza de efeitos sonoros para os ambientes.

As músicas de fundo utilizam alguns instrumentos de corda e percussão, sem grande aproveitamento de suas potencialidades. A despeito de terem ritmos adequados para as situações, as peças são pouco variadas em número de faixas, harmonicamente pouco originais e melodicamente simplórias e repetitivas.

Uma boa história, mas pouco imersiva

Apesar de faltar polimento e sofisticação na parte audiovisual e do level design ser pouco elaborado, Gerda: A Flame in Winter (Switch) traz uma boa proposta narrativa e metanarrativa e um resultado satisfatório em termos de roteiro de ficção histórica. É uma pena que não consiga ser um título muito imersivo, mas, por seus pontos fortes, é um título recomendável aos fãs de adventure de ficção histórica.

Prós

  • Design narrativo interessante e flexível para lidar com dilemas morais e sociais durante a Segunda Guerra;
  • Interessante proposta metanarrativa de ficção histórica;
  • Direção de arte graciosa, minimalista e coerente com a cenografia de ficção histórica;
  • Boas adições mecânicas de elementos de RPG;
  • Uma história sensível e bem contextualizada regional e historicamente;

Contras

  • Level design um tanto limitado e simplório para exploração e seções furtivas;
  • Falta de polimento e de refinamento em modelagem de personagens, iluminação e animação;
  • Design de som e músicas muitos simples e com peças repetitivas e pouco variadas;
  • Alguns personagens importantes pouco desenvolvidos e aproveitados.
Gerda: A Flame in Winter — PC/Switch — Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Cristiane Amarante
Análise produzida com cópia digital cedida pela Dontnod Entertainment

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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