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Análise: Mediterranea Inferno (Switch) é uma intoxicante história sobre trauma, frustração e identidade

Três jovens queer tentam reafirmar sua amizade depois do inferno que arrasou o mundo entre 2020 e 2021.

!AVISO: ESTA ANÁLISE CONTÉM TEMAS SENSÍVEIS. LEIA POR SEU PRÓPRIO RISCO!
A Primeira Guerra Mundial marcou o fim de impérios. A Segunda Guerra Mundial definiu os novos líderes globais. A Guerra Fria introduziu o que seria a cultura atual. E, por fim, o Covid definiu a nova sociedade, dividida entre ideais e informações, segurança e paranoia. Alguns países reagiram rápido ao vírus, enquanto outros…

Dois anos após o terror, o mundo pareceu se recuperar lentamente. O mesmo não pode ser dito sobre a população, com muitas pessoas densamente afetadas pelo isolamento, incerteza e morte ao redor. Mediterranea Inferno é uma narrativa nua (e bota nudez nisso) e crua sobre a geração atual e como ela lida com o pós-Covid. Mergulhe nessa miragem, vamos dar uma volta.

Os Garotos Sol

Em Milão, Itália, havia um trio de rapazes gays, I Ragazzi del Sole (Os Garotos Sol), bastante conhecidos por sua presença forte, boa aparência e personalidade atraente. Eles eram Cláudio, o líder do grupo e herdeiro da renomada família Visconti; Andrea, o mais alegre e despojado do grupo, comumente o mais “galinha”; e Mida, o mais atraente, porém distante emocionalmente dos garotos. Amigos de infância, no começo de seus 20 anos, eram os donos da noite, o mundo seria deles.

Seria. Por dois anos, os amigos de infância foram separados pela pandemia, praticamente perdendo contato. Quando o verão chega na Itália, Cláudio sugere que o trio se reencontre na mansão de seu falecido avô, vítima da doença, para curtirem três dias juntos e colocarem o papo em dia. Logo na primeira noite, no entanto, eles conhecem Madama, um rapaz que oferece misteriosas frutas, as Frutas da Miragem, que imerge quem as come em viagens psicodélicas e de auto resolução, prometendo a Salvação se conseguirem achar 8 cartas nas Miragens.

Os rapazes têm opiniões diferentes sobre como querem curtir o verão. Cláudio quer reencontrar sua identidade (e lidar com um trauma envolvendo seu avô); Andrea quer cair na gandaia, tentar retomar de onde ele e seus amigos pararam antes da pandemia (e lidar com sua solidão interna); Mida quer paz e sossego, longe dos holofotes por ser um influencer (e tentar provar que não é mais o garoto fraco de antes, tentando se afastar dos amigos). Essas ideias diferentes começam a causar tensões entre os rapazes, testando seus vínculos.

Máscaras e Cicatrizes

O jogo é uma mistura de três gêneros: Visual Novel, Point-and-Click e Escolha Sua Aventura. Os momentos de maior dinamismo são nas Miragens, quando se deve investigar o ambiente e ver o que passa na mente de cada garoto. Boa parte da gameplay se passa em Visual Novel, com os rapazes conversando entre si e tentando esconder as marcas emocionais e psicológicas deixadas pela pandemia. A história muda consideravelmente baseada nas escolhas que podem ser tomadas, seja ir para uma balada ou para uma feira do rolo, ou a decisão entre comer uma Fruta ou não, sendo que elas custam dinheiro, e dentro das miragens também podem acontecer transações, inclusive para encontrar algumas cartas.

O ponto mais alto do jogo é sua apresentação. Misturando desenho com ambientes 3D e cenários super coloridos, cada momento pode ser confundido com uma obra de arte, especialmente nas Miragens, aliado ainda com uma fantástica trilha sonora. As Miragens por si só são um exemplo grandioso de storytelling e análise de personagem, com descrições que cada garoto oferece sobre elementos selecionados ou simplesmente a forma como elas são formadas, mergulhando nas dores que eles tentam fortemente esconder.

Os meninos são personagens carismáticos, cada um com suas falhas e assustadoramente reais. Nas Miragens de Cláudio, ele procura encontrar sua própria identidade enquanto tenta superar a perda e inferioridade com seu avô, o único membro de sua família que amava, sendo os temas morte e legado os mais presentes, alinhados com cores mornas. Andrea deve encarar seus impulsos e desejos sexuais, seu vício por atenção em Miragens bombásticas, explodindo com cores e música animada para esconder sua solidão interna. Por fim, Mida explora os cantos sombrios de seu coração, tentando ignorar a amargura por seus sentimentos amorosos por Cláudio terem sido tratados como piada e vivendo um enorme vazio com a popularidade que conquistou na pandemia, sentindo apenas solidão e isolamento, inclusive dos próprios amigos.

Céu travestido de Inferno

Tratando de temas pesados como morte, depressão, sexo e uso de drogas, Mediterranea Inferno não esconde a dura realidade do mundo pós-Covid, especialmente para a geração que nasceu no final do século XX. Para um contexto histórico e geográfico, a taxa de mortalidade em 2020 na Itália por Covid foi a maior do país desde 1945, com a Segunda Guerra Mundial. Em território italiano, duras políticas de lockdown e distanciamento haviam sido impostas, penalizando quem saía de casa não vacinado e aleijando a economia do país, ao mesmo tempo que protestos aconteciam, com o mais notável sendo o protesto de outubro em Nápoles.

A história e experiência que I Ragazzi del Sole conta é tão trágica e interessante, mas é uma pena que comete dois erros crassos: o jogo está totalmente em inglês e a lentidão para fazer certas ações. Eu acredito que visual novels atualmente têm a obrigação mínima de conter, pelo menos, texto em português por conta das inúmeras paredes de texto que compõem grande parte do gameplay.

Mediterranea Inferno é um jogo curto, o que não é um problema para conseguir chegar aos inúmeros finais e recarregar algum save para ver como a outra escolha afetaria o roteiro (o tempo de carregamento é rápido, mas existe um bug que, se apertar o A enquanto estiver carregando, a tela fica carregando e salvando por alguns segundos até estabilizar). O problema, no entanto, é que cada segmento deve ser passado manualmente, sem opção de acelerar o texto, ir automaticamente ou muito menos uma opção para facilmente acessar os capítulos/escolhas separadamente.

Salvamento

O mundo ainda está se recuperando do pesadelo que foi o Covid. Alguns conseguiram voltar à normalidade, outros podem nunca mais ver o mundo com os mesmos olhos. Eu odeio que as crianças do futuro terão que estudar sobre esse período em seus livros de História nas escolas. E, para a geração atual, a geração que entende perfeitamente o que esses três amigos da Itália sentiram e ainda sentem, o tempo parece mais assustador do que nunca.

Mediterranea Inferno é um exemplo. Artístico, criativo, com forte representatividade e um reflexo do que poderia ser chamado da Segunda Geração Perdida. É um jogo difícil de recomendar por causa de seus temas pesados e também pela falta de tradução, mas ainda assim é um jogo para, pelo menos, apreciar o design e a música. Existe beleza mesmo nos momentos mais difíceis, especialmente para aqueles que tentam se reconectar. Fiquem bem, por favor.

Prós:

  • História curta e pesada, mas interessante;
  • Gráficos desenhados que misturam maravilhosamente com o ambiente 3D;
  • Trilha sonora intoxicante;
  • Personagens carismáticos;
  • Um retrato grotesco mas obrigatório sobre um dos momentos mais difíceis na História contemporânea.

Contras:

  • Falta de tradução para o português;
  • Falta de opções para acelerar/pular capítulos.
Mediterranea Inferno — PC/PS4/PS5/XBO/XSX/Switch — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Cristiane Amarante
Análise produzida com cópia digital cedida por Santa Ragione

Formado em Publicidade e Propaganda na USC e especializado em Marketing Digital, sou Editor de Vídeos também, meu TCC foi sobre a Guerra dos Consoles e evolução da publicidade nos games. Jogo um pouco de tudo e também escrevo. Me descrevo como um artista.
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