O que Shin Megami Tensei V tem a dizer sobre o divino

Entre deuses esquecidos e demônios com ideologia, SMT V questiona o que torna uma crença legítima.

em 18/06/2025
Shin Megami Tensei V (SMT V) talvez seja o jogo da franquia que mais leva a sério o pano de fundo mitológico de seus demônios. Ao invés de funcionarem apenas como “Pokémons do inferno”, aqui eles são tratados como entidades com histórias, ressentimentos e papéis específicos dentro da cosmologia do jogo. A narrativa explora a transição desses seres: de divindades respeitadas a “demônios”, no momento em que o Deus monoteísta toma o controle da realidade. Uma alegoria densa e ousada que permeia toda a construção temática.

Atenção: contém spoilers

Esse texto só vai levar em consideração a história de Shin Megami Tensei V, e não sua versão “aprimorada” Shin Megami Tensei: Vengeance.

Mitologia, ordem e transgressão

A trama coloca o jogador no papel do Nahobino, uma entidade proibida que representa a fusão entre humano e demônio — um ponto de tensão entre as ideias de ordem e transgressão. E é em torno dessas ideias que o jogo se organiza: seguir regras impostas por forças superiores ou destruí-las e escrever as suas próprias. Como é tradição na série Shin Megami Tensei, os personagens são construídos para encarnar as ideias centrais da narrativa. Um exemplo marcante é Ichiro Dazai, colega de classe do protagonista. Inicialmente retratado como alguém inseguro e carente, Dazai encontra força ao se apoiar em estruturas externas. Sua jornada ganha profundidade quando ele se transforma radicalmente ao ser acolhido por um sistema de poder que valida sua necessidade de regras e propósito, revelando como a busca por ordem pode ser tanto um refúgio quanto uma armadilha.

Convívio com o diferente e reflexões sobre Poder

Nesse sentido, SMT V é extremamente eficaz em questionar estruturas religiosas e sociais, com personagens como Abdiel (um anjo que personifica a ordem absoluta) agindo de forma calculista, traindo até seus aliados anômalos (como o protagonista) em nome da manutenção dessa ordem. Ao mesmo tempo, o jogo não pressiona você a seguir o caminho da Law (ordem); na verdade, a desconfiança em relação a Abdiel e ao Deus criador é palpável. Isso incentiva o jogador a experimentar os múltiplos finais: começando pelo final de ordem como curiosidade, passando pela sedução do caos (que nada mais é do que uma troca de poder entre panteões), até chegar no True Ending, onde há a real subversão do sistema.



O modo como a jogabilidade se integra na história e nos temas do jogo é particularmente interessante, pois legitima a convivência com os demônios como seres com identidade e ideologia. Mesmo que mantenham certa distância, você passa todo o jogo interagindo, negociando e lutando ao lado deles, criando laços que transcendem o "coletar monstros". Eles têm vozes e desejos.

E é aí que a parte menos sociável do jogo ganha sentido: não é que SMT V seja solitário, mas ele se recusa a colocar os humanos como o centro moral da narrativa. Em vez de Social Links, como em sua série spin-off Persona, temos convívio com o diferente, o marginalizado, o estranho, o divino renegado.
Os demônios de SMT V, ou melhor, os deuses destronados, funcionam também como uma metáfora poderosa para sistemas de poder que já dominaram o mundo, mas foram rebaixados, esquecidos ou demonizados com o tempo. São ecos de antigas ordens que perderam sua legitimidade diante de uma nova hegemonia, muito como impérios caídos, filosofias abandonadas ou figuras históricas que, uma vez centrais, foram relegadas à margem pela narrativa dominante.
Nesse sentido, o jogo não apenas revisita mitologias, mas também convida o jogador a refletir sobre o que constitui o poder “legítimo” e o que acontece com as formas alternativas de autoridade quando o mundo decide que elas não servem mais.

Ambição temática vs. Limitações de execução

Shin Megami Tensei V é uma das entradas mais tematicamente ambiciosas da série, trazendo à tona discussões profundas sobre divindade, poder e liberdade. Ele trata seus demônios como figuras mitológicas reais, seres com histórias e ideologias, e recusa a simplificação moral típica dos JRPGs. Ao invés de te guiar por um trilho, ele propõe que você reflita, escolha e lide com as consequências. A convivência com os demônios, longe de ser um sistema de colecionáveis, é central para entender o mundo do jogo e seus dilemas.

O jogo ainda entrega um twist metanarrativo interessante no final, ao tocar no clichê de “matar Deus”, comum nos JRPGs. A ideia do Mandala System funciona como uma crítica e também uma reflexão sobre o vício cíclico dessas histórias: há sempre outro Deus a ser derrubado, e talvez o verdadeiro desafio seja quebrar o ciclo, não apenas trocar de déspota.
O título, porém, não está isento de problemas. Talvez por ter sido desenvolvido durante a pandemia de COVID-19, e por contar com uma equipe formada por veteranos da série, novos contratados e membros vindos da equipe de Etrian Odyssey, o jogo sofre com o que parece ser falhas de comunicação e planejamento. É um projeto ousado para um time que até então trabalhava em plataformas como o 3DS e Wii U, e a transição para o Switch certamente impôs novos desafios quanto à definição do escopo do projeto.

Esses obstáculos se refletem em pontos claros: personagens importantes como Hayataro se juntam ao jogador no final com nível desbalanceado; a história de Nuwa e Yakumo, essencial para o True Ending, é mal explorada; e a trama envolvendo Miyazu e Khonsu, que poderia aprofundar a relação entre deuses/demônios e humanos, é tratada de forma superficial. São detalhes que prejudicam a coesão narrativa de um jogo que tinha material para entregar algo ainda mais impactante.


Ainda assim, SMT V compensa essas falhas com uma direção temática corajosa e um dos melhores usos de mitologia em toda a série. Mesmo tropeçando na execução, ele propõe algo raro: um JRPG que te faz questionar não só as escolhas dentro do jogo, mas os próprios alicerces das histórias que estamos acostumados a jogar.

Revisão: Cristiane Amarante
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João Pedro Vale
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