Pokémon: como o animismo permeia e justifica o mundo pokémon

Pokémon mostra uma relação animista entre humanos e criaturas com alma, explicando como até os objetos mais simples podem ser pokémon.

em 02/07/2025

Com seus quase 30 anos de existência e sendo uma das franquias mais famosas da cultura pop, Pokémon certamente não precisa de longas apresentações. Mas por trás dos famosos Pikachu e Charizards da vida, existe algo mais profundo: uma visão de mundo que parece emprestada de antigas tradições espirituais ao redor do planeta — uma visão onde tudo, absolutamente tudo, pode ter alma.

Como é possível que uma espada, um balão ou até um saco de lixo possam ser Pokémon? Em um mundo onde um chaveiro (Klefki), uma vela (Litwick) e até um monte de areia (Sandygast) ganham vida, talvez estejamos lidando com algo mais do que só criatividade e pura abstração. Talvez estejamos diante de um universo com uma visão completamente animista.

Mas o que é animismo?


No campo da antropologia, o animismo é o nome dado à crença de que todos os seres e coisas — humanos, animais, plantas, pedras, rios, ferramentas, fenômenos naturais — têm um espírito, uma essência vital. Não se trata de mitologia no sentido com o qual estamos acostumados, e sim de uma cosmologia completa, que organiza a forma como as pessoas se relacionam com o mundo e que pode ser encontrada em diversas religiões e culturas ao redor do mundo.

Culturas animistas não separam a “natureza” da “cultura”, nem o “vivo” do “não-vivo” de forma rígida. Um tambor pode ter alma. Uma montanha pode ser um ser sagrado. Um guarda-chuva velho pode ganhar vida, como nos mitos japoneses dos tsukumogami — sendo objetos que, após cem anos de existência, despertam consciência espiritual e que servem de inspiração para Honedge, Banette, entre outros.

No Ocidente, essa visão foi marginalizada com o avanço da ciência moderna, que passou a enxergar o mundo como uma máquina, feita de matéria sem espírito. Mas Pokémon — que nasceu no Japão e é fortemente influenciado pelo pensamento xintoísta — parece operar sob uma lógica completamente diferente.

O universo Pokémon é um mundo animista


Se você olhar com atenção, verá que o mundo Pokémon está repleto de sinais de uma visão animista. Não estamos falando apenas de criaturas inspiradas em animais ou plantas, mas também em objetos, forças elementares e até ideias abstratas. E todas essas entidades são tratadas como seres vivos, com personalidade, emoções, vontades próprias e histórias.

É por isso que, no universo Pokémon, não é estranho encontrar criaturas como:Honedge, uma espada amaldiçoada que se move por vontade própria;Rotom, uma entidade elétrica que possui eletrodomésticos;Banette, um boneco de pelúcia que ganhou vida por ter sido abandonado; Trubbish, literalmente um saco de lixo animado.

Esses não são simples designs “malucos”. São manifestações de uma lógica animista onde até o que é descartado, esquecido ou artificial pode conter alma. A lista é longa — e cresce a cada geração. Não é exagero dizer que, em Pokémon, absolutamente qualquer coisa pode ser habitada por um espírito. Isso torna o mundo da franquia não apenas criativo como também  metafisicamente fascinante e de possibilidades infinitas, afinal tudo pode ser (ou se tornar) pokémon.

Uma Pokédex animista


O mundo Pokémon é, no fundo, uma espécie de bestiário espiritual moderno. A Pokédex — com suas centenas de entradas descrevendo cada criatura em detalhes — funciona como um catálogo encantado do mundo. Em vez de apenas classificar animais e plantas, ela documenta seres híbridos, símbolos e, muitas vezes, com histórias trágicas ou místicas.

Em vez de olhar para a natureza com o olhar racional ou unilateral, Pokémon convida o jogador a se relacionar emocional e espiritualmente com tudo no mundo ao seu redor. Mesmo o mais humilde dos Pokémon, seja inspirado num animal, uma divindade, espírito ou objeto pode ser seu parceiro de jornada. Isso é, na prática, uma forma de animismo gamificado.

Ao nos entregar detalhes “biológicos”, contextos ambientais e mitologia, a pokédex cria um plano de fundo rico e curioso, porém que dá vida e profundidade a esse mundo e que, não poucas vezes, faz referência a algo de nossa própria realidade.

Tecnologia e espírito: uma combinação curiosa


Uma das sacadas mais interessantes de Pokémon é como ele mistura animismo com tecnologia. Enquanto outros mundos de fantasia colocam magia e ciência em lados opostos, Pokémon une as duas coisas. Máquinas que capturam monstros com alma? Um fantasma que habita uma geladeira? Tudo é possível — e não parece contraditório.

Basta lembrar que a franquia mais de uma vez apresentou criaturas artificiais, clonadas ou modificadas. Temos Porygon, um pokémon criado de forma totalmente digital e trazido ao mundo material; Mewtwo, nascido de um processo de clonagem; ou Genessect, um híbrido de uma criatura ancestral acoplada com ferramentas modernas.

Nesse sentido, Pokémon atua como contraparte à visão de mundo tecnocrática e desencantada que domina o Ocidente. Em vez de um mundo morto e mecânico, o universo Pokémon é vivo, misterioso e cheio de espírito, o que obriga seus habitantes a reinventarem sua convivência com o mundo dia após dia.

O animismo como design e como filosofia


Quando pensamos nos Pokémon podendo ser objetos com alma, estamos diante de uma escolha de design com implicações profundas. Ela rompe com a ideia de que só o natural é digno de respeito, e amplia a ideia de vida para o que é artificial, híbrido, estranho.

Essa visão transforma o modo como interagimos com o mundo do jogo. O jogador deixa de ser apenas um coletor ou treinador: ele se torna um mediador, um companheiro de seres com sua própria história e essência.

Uma ecologia espiritual: respeito, vínculo e cuidado


O relacionamento entre humanos e Pokémon também tem um caráter animista: eles não são apenas “recursos” a serem usados em batalhas, mas companheiros espirituais. O vínculo que um treinador constrói com seus Pokémon é muitas vezes mais profundo do que o de mestre e servo — é uma relação de confiança, amizade e crescimento mútuo.

Isso se alinha com o conceito de totemismo, em que certos animais ou espíritos representam clãs, famílias ou indivíduos, servindo como guias espirituais e companheiros simbólicos, o que pode ser visto também na ideia de ginásios temáticos por tipos.

Além disso, há, em Pokémon, uma ética implícita de cuidado com o mundo e com seus habitantes — mesmo os mais estranhos, mesmo os descartados, como Trubbish ou Garbodor. Em tempos de crise ambiental, essa mensagem ganha ainda mais força: não existe lixo no mundo animado de Pokémon — tudo pode ter valor, história e espírito.

Ao dar “alma” aos objetos que nos acompanham no dia a dia, a visão animista dá a possibilidade de que avaliemos e demos mais importância a eles, o que vai contra a lógica de descarte e substituição rápida que prevalece nos dias de hoje. E tanto os jogos quanto as diversas encarnações da franquia em outras mídias trataram como trágicos e catastróficos os resultados do abuso e da quebra do equilíbrio por parte dos humanos.

Pokémon como filosofia do reencantamento


Pokémon é muito mais do que um jogo sobre "pegar todos". É uma metáfora poderosa para uma forma diferente de ver o mundo — uma onde tudo pode ser encantado, significativo, espiritual. É uma resposta, mesmo que inconsciente, ao desencantamento do mundo moderno, à perda de conexão com aquilo que é misterioso, sutil e simbólico.

Ao transformar objetos ordinários em criaturas vivas e relacionáveis, Pokémon nos convida a imaginar um mundo em que até uma pedra ou uma vela possa ter alma — e, talvez, a rever nosso próprio modo de olhar para as coisas. O que chamamos de “inútil”, “velho”, “inanimado” ou “sem valor” pode, na verdade, estar esperando para nos contar uma história.

Revisão: Alessandra Ribeiro


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Fernando Lorde
Fernando Paixão Rosa, normalmente referenciado por Lorde, está escrevendo pela internet afora há mais de dez anos e com alguns livros publicados. Escutando música 24h/dia, fã de cultura pop em suas muitas manifestações e mais fã ainda das IP's da Nintendo. Registrando as aventuras nos games no Instagram (@lordeverse) e Twitch (@lordeverso).
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