“Numa toca no chão vivia um hobbit. Não uma toca desagradável, suja e úmida, cheia de restos de minhocas e com cheiro de lodo; tampouco uma toca seca, vazia e arenosa, sem nada em que sentar ou o que comer: era a toca de um hobbit, e isso quer dizer conforto.”
Este é o icônico trecho que inicia O Hobbit (1937), a gênese da epopeia de Tolkien, que viria a inspirar a cultura e além. Entre as obras baseadas nos mitos, temos também jogos para explorar esse universo, e a mais nova adição é Tales of the Shire: um jogo de O Senhor dos Anéis, trazendo uma aventura mais pé no chão diante as épicas lutas e odisseias das outras adaptações. Venha comigo, eu já preparei o café da manhã.
Uma vida pacata
Estamos na Terceira Era, o período de longa paz presidido após a suposta morte de Sauron, o lorde sombrio. Na pele de um hobbit criado pelo jogador, recebemos carona na carroça de Gandalf, o Cinzento, até a vila de Beirágua no Condado, onde nos instalamos em uma toca no chão para chamarmos de lar, conhecer vizinhos e viver a boa vida de um hobbit.
Em questão de história, isso é o máximo que conseguimos. Tales of Shire vive e morre na premissa de ser um cozy game, nos moldes de exemplos como Animal Crossing, em que a experiência de viver uma vida pacata, mas divertida, é priorizada em favor de uma narrativa complexa e objetivos claros. Considerando a natureza comum de hobbits e seus costumes pacíficos, além da ausência de um jogo assim na biblioteca Tolkien entre tantos games de ação, Tales of Shire cumpre bem a tarefa de ser um simulador dos pequenos humanoides.
E como é a vida de um hobbit? Bem simples, honestamente. A maior fama de um hobbit é seu amor por refeições e é o maior incentivo de evolução em Tales of Shire, uma vez que uma comunidade não é feita apenas de um único indivíduo. Para fazer Beirágua crescer e ser reconhecida como vila, nosso hobbit precisa conhecer seus vizinhos e se tornar amigo deles por meio das refeições, convidando-os para desjejuns e aumentando nosso vínculo de amizade com eles, melhorando não só o pequeno lugar como também a nós mesmos, presenteando-nos com novas mobílias e roupas.
O ato de cozinhar não é simplesmente colocar ovos em uma tigela e esperar uma omelete. No jogo, somos incentivados a explorar receitas com ingredientes que podemos encontrar por Beirágua, como em árvores e pesca, ou até mesmo cultivarmos em nossa própria horta. Na medida que interagimos com nossos vizinhos, conhecemos os tipos de comidas que eles gostam, se preferem iguarias mais doces ou azedas, salgadas ou temperadas, cozidas ou fritas, tudo dependendo da forma que preparamos pratos e da qualidade dos ingredientes. Além disso, o game conta com um sistema de estações, que varia as opções de materiais a serem encontrados, o que é bem legal, mesmo se fosse mais interessante se seguisse o modelo de Animal Crossing que muda de acordo com o mundo real.
Cozinhar é um sistema complexo e um pouco frustrante, porém, ao mesmo tempo, terapêutico para achar o ponto certo de tudo. Felizmente também o jogo está muito bem traduzido para o português brasileiro, adaptando a escrita personalizada de Tolkien para nosso idioma, sejam os diálogos cheios de vida que esse universo literário é conhecido ou simplesmente pelos nomes dos personagens (não temos a opção de escrever livremente o nome de nosso hobbit, mas as opções são excelentes. No meu caso, não pude resistir em colocar o nome Moro Monteiro).
Outro aspecto legal está na modelagem dos personagens. A desenvolvedora Wētā Workshop é conhecida de longa data do universo Tolkien, criando sets, figurinos e merchandising das adaptações cinematográficas, mas buscou se distanciar dos filmes de Peter Jackson para criar sua própria identidade visual de Gandalf e dos hobbits. O design do jogo é bem fofo, parecendo que saiu direto de um livro infantil e deixando o mundo bastante vivo. Estranhamente, o jogo não contém voz, com uma trilha sonora esquecível que deixa a experiência bastante monótona.
E é aqui que os problemas começam a aparecer. A princípio, a monotonia e passividade de um cotidiano hobbit é agradável, porém começa a entediar rapidamente quando as recompensas ficam mais lentas para desbloquear. O jogador é incentivado a convidar os vizinhos a desjejuns, mas em nenhum momento somos convidados a participar de eventos fornecidos pelos NPCs, como acontece em Animal Crossing. E se, porventura, nós não convidarmos algum vizinho por um tempo, recebemos uma carta descontente do amargurado, algo bastante fora de sintonia com a personalidade de um hobbit.
Não ajuda que, apesar de fofos e charmosos na superfície, nossos semelhantes são rasos como uma poça, nada interessantes ou memoráveis. Mais uma vez, comparando com jogos como Animal Crossing e Harvest Moon, em que os personagens não são complexos, mas são memoráveis e simpáticos, diferente dos hobbits, que demandam sua atenção a ponto de querer fazer o jogador bancar o Bilbo e sumir com o Um Anel. Alie isso ao fato de que estamos completamente sozinhos em Beirágua, sem multiplayer local ou online para visitarmos outras versões do Condado ou jogar com amigos e desconhecidos, o que deixa tudo ainda mais monótono e gradativamente entediante, presos em uma rotina motivada pelo simples ato de cozinhar e nada além.
Mas o aspecto mais agravante, ao final do dia, está em sua performance. O estilo visual é adorável, sim, mas ele nunca está propriamente renderizado, demorando para carregar o começo do jogo, além de apresentar bugs de performance. Personagens presos no lugar fazem a experiência final parecer algo direto da transição de gerações entre PS1 e PS2, com jogos ainda se adaptando a gráficos mais complexos e expressivos, porém deixando tudo feio e sem textura. Ah, sem contar os eventuais crashes inexplicáveis. O jogo já recebeu diversas atualizações que melhoraram um pouco a experiência, mas continua algo bastante alarmante que me faz questionar o porquê foi lançado neste estado, considerando que o último fiasco de uma adaptação Tolkien também teve problemas similares.
Tales of the Shire: um jogo de O Senhor dos Anéis traz uma proposta única para a biblioteca de adaptações de Tolkien e cumpre seu papel superficialmente, colocando o jogador na pele de uma das criaturas mais icônicas da Terra-Média.
No entanto, tal como um bolo mal preparado, apresenta enormes inconsistências que deixam o resultado final praticamente vazio e sem sabor. Não é um jogo inútil e, de longe, não é o pior jogo do universo Tolkien, mas com certeza é um que precisava de mais carinho no desenvolvimento.
Aparentemente, a produção desse jogo foi extremamente difícil, com falta de experiência na equipe e crunch. Se esse foi o caso, então está mais do que óbvio que Saruman está envolvido no resultado final, considerando que ele seria derrotado em Beirágua no clímax de Retorno do Rei. Agora está explicado a má vizinhança.
- Muito bem traduzido para o português brasileiro, encapsulando bem o espírito Tolkien;
- Estilo artístico fofo, feito por uma equipe bastante experiente com a obra;
- Ambientação relaxante e em par com a natureza Hobbit;
- Proposta única para jogos da franquia e cumprimento do que promete.
Contras
- Cozinhar é divertido, mas deixa entediado rápido, além da falta de variedade de outros afazeres;
- Falta de polimento na performance, sejam modelos mal renderizados, carregamentos longos ou crashes inexplicáveis;
- Musica repetitiva e ausência de voz deixa a experiência vazia;
- Ausência de multiplayer e personagens pouco intuitivos minimizam o comprometimento contínuo com o jogo.
Tales of the Shire: A The Lord of the Rings Game — PC/PS5/XSX/Switch — Nota: 5.0Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Alessandra Ribeiro
Análise produzida com cópia cedida pela Private Division