O Nintendo 64 é lembrado com carinho por seus mundos coloridos, mascotes carismáticos e aventuras épicas que definiram uma geração. Mario saltando por castelos, Link enfrentando Ganon em Hyrule, Banjo e Kazooie salvando o dia — o console tinha uma reputação de ser muito menos violento. Mas nem tudo eram cogumelos e estrelas. Por baixo da superfície alegre, o N64 também abrigou um lado obscuro: títulos que ousaram ser violentos, sombrios ou simplesmente bizarros, quebrando o estereótipo “family friendly” da Nintendo.
Nightmare Creatures — terror gótico em plena era 3D
Lançado em 1998, Nightmare Creatures trouxe uma Londres vitoriana mergulhada em neblina, monstros grotescos e uma atmosfera digna de filme de terror. O título combinava combate corpo a corpo e horror lovecraftiano em um dos raros exemplos de “terror de ação” do N64.
Não era o jogo mais fluido do mundo, mas sua estética sombria e trilha sinistra marcaram os fãs que queriam algo mais adulto no console.
Conker’s Bad Fur Day — o mascote bêbado que a Nintendo não esperava
Quando a Rare anunciou um novo jogo estrelando um esquilo fofinho, ninguém imaginava o que viria. Conker’s Bad Fur Day (2001) é uma sátira impiedosa aos próprios jogos de plataforma da era 90.
Com humor sujo, palavrões, paródias de filmes e até uma ópera cantada por um monte de esterco, o jogo virou lenda. Conker mostrou que o N64 também podia ser irreverente e proibido para menores — algo praticamente impensável em um console da Nintendo até então, ou é o que achavamos.
Shadow Man — vozes do além e o horror do Voodoo
Baseado nos quadrinhos da Acclaim, Shadow Man (1999) mergulhou os jogadores em um universo de vodu, assassinatos e mundos infernais. O protagonista, Michael LeRoi, é um anti-herói que viaja entre o mundo dos vivos e o dos mortos para impedir o apocalipse. Com uma narrativa adulta e temas de morte, religião e possessão, Shadow Man foi ousado, sombrio e artisticamente à frente de seu tempo.
Série Turok — o sangue, a selva e os dinossauros
A franquia Turok, da Iguana/Acclaim, foi um dos pilares do N64 no gênero FPS. Turok: Dinosaur Hunter (1997) e suas sequências levaram o jogador a um mundo pré-histórico brutal, repleto de criaturas colossais e armas devastadoras. Além da violência explícita, Turok 2: Seeds of Evil empurrou o console ao limite técnico, com gráficos impressionantes e uma atmosfera crua e selvagem. Nada de “cute dinos” aqui — só carnificina pixelada e adrenalina.
Doom, Quake e Hexen — os deuses do FPS no mundo da Nintendo
Em uma época em que a Nintendo era vista como “para crianças”, ver nomes como Doom, Quake e Hexen no N64 foi quase um choque. Esses ports trouxeram a brutalidade e o clima de horror dos PCs para o console, com sucesso surpreendente. Doom 64, em particular, é lembrado até hoje como um dos capítulos mais atmosféricos e únicos da série — sombrio, silencioso e carregado de tensão.
Os três títulos compartilhavam estética e gameplay bem parecidos, mas o que os coloca como marcantes no console é o como colocavam os jogadores em ambientes de horror e violência quase impensáveis para o que se pensava ser o público do console — uma faixa etária mais baixa. Doom, Quake e Hexen ajudam a provar exatamente o contrário, que havia espaço até para o público do gore e jogos mais adultos.
Duke Nukem 64 — humor ácido e testosterona
O herói mais politicamente incorreto dos anos 90 também deu as caras no N64. Duke Nukem 64 manteve o espírito debochado e violento de Duke Nukem 3D, ainda que com censuras aqui e ali. Mesmo assim, o jogo preservou o humor ácido, as armas absurdas e a pose de “macho alfa” que definiram o personagem. Um lembrete de que a Nintendo, às vezes, sabia relaxar o código de conduta.
Resident Evil 2 — o terror chega de vez ao N64
Poucos acreditavam que a Capcom conseguiria enfiar Resident Evil 2 em um cartucho — mas o "milagre" aconteceu. A conversão ficou excelente, preservando quase tudo da versão original de PlayStation. Leon e Claire explorando a delegacia infestada de zumbis foi o ponto mais alto do horror no N64, mostrando que o console podia, sim, entregar um survival horror de primeira.
Resident Evil 2 talvez seja o título de survival horror, ou horror no geral, mais lembrado do console e que mostrou o quanto ele poderia entregar ambientação e temática adulta de forma ampla, sem perder qualidade. Basta lembrar que também quase tivemos um outro Resident Evil no N64 e que ele seria exclusivo.
Perfect Dark — espionagem e violência futurista
Sucessor espiritual de GoldenEye 007, Perfect Dark (2000) foi a obra-prima madura da Rare. Com espionagem, conspirações e tiroteios intensos, o jogo misturou ficção científica e realismo com uma narrativa complexa. Joanna Dark se destacou como uma protagonista forte e carismática em um jogo que, embora “teen-rated” em alguns mercados, abordava temas de ética, poder e tecnologia de forma surpreendentemente adulta.
Não é atoa que Perfect Dark seja um dos títulos mais lembrados e amados do console. Aprimorando a jogabilidade de GoldenEye e aplicando uma atmosfera e narrativa única, ajudando a dar um ar ainda mais maduro e temeroso para o console.
Body Harvest — alienígenas, destruição e liberdade
Antes de GTA III, a DMA Design (hoje Rockstar North) já experimentava mundos abertos com Body Harvest (1998). O jogo colocava o jogador em guerra contra alienígenas que dizimavam populações inteiras. A proposta sombria e a escala ambiciosa o tornaram um cult clássico. Apesar de graficamente estar longe de ser o melhor do console, é um dos títulos mais conceitualmente avançados e sombrios do catálogo do N64.
O visual futurista e cheio de cores do jogo, contrasta com sua temática, mostrando que tratar de tramas que beiram o horror não precisam ser escuros e com a tensão sonora assustadora para ser sombrio.
South Park — humor negro em forma de neve
Baseado no desenho mais controverso da época, South Park (1998) trouxe a insanidade de Cartman, Stan, Kyle e Kenny em um FPS cheio de armas ridículas e piadas escatológicas. Tecnicamente questionável, mas espiritualmente fiel ao humor negro da série, o jogo é uma cápsula do tempo do fim dos anos 90 — politicamente incorreto, imaturo e, paradoxalmente, parte da maturidade cultural da época.
É difícil de imaginar como um jogo de South Park poderia pousar no Nintendo 64. E mesmo que o desenho seja conhecido por sua capacidade de estrapolar qualquer limite, o título para o console consegue manter sua irreverência, mas sem exagerar na mão.
Menções Honrosas — Sombras que nasceram no N64
Nem todo jogo sombrio do Nintendo 64 chegou às prateleiras, alguns evoluíram e renasceram no GameCube, carregando o DNA do horror que começou ainda na era dos cartuchos.
Resident Evil 0 começou como um ambicioso projeto para o N64, planejado para aproveitar o sistema de troca rápida entre dois personagens em tempo real. As limitações técnicas e o tamanho do cartucho, no entanto, forçaram a Capcom a migrar o jogo para o GameCube, onde finalmente ganhou vida em 2002 com visuais espetaculares e uma atmosfera claustrofóbica de tirar o fôlego.
Eternal Darkness: Sanity’s Requiem, da Silicon Knights, também nasceu como um projeto do N64. Sua proposta era única: misturar horror psicológico, narrativa fragmentada e uma mecânica revolucionária de “sanidade”, que distorcia o jogo conforme o jogador enlouquecia. O título acabou sendo relançado no GameCube, tornando-se um dos maiores clássicos cult da história da Nintendo e uma prova de que o horror pode ser tanto intelectual quanto visceral.
O lado oculto do arco-íris
O Nintendo 64 foi muito mais do que um palco para aventuras familiares. Entre Marios e Zeldas, ele abrigou experiências sombrias, adultas e ousadas que mostraram a versatilidade do console. Esses jogos provaram que até a plataforma mais colorida pode esconder segredos obscuros e que a maturidade nos games não vem apenas do sangue ou do palavrão, mas da coragem de desafiar expectativas, como o próprio Majora’s Mask também fez, se tornando o título mais sombrio da franquia.
No fim, talvez seja isso que torna o N64 tão especial: um console que conseguiu equilibrar o brilho inocente de Super Mario 64 com a escuridão gótica de Shadow Man.
Revisão: Beatriz Castro












