A importância da narrativa em Wolfenstein II: The New Colossus

A experiência proporcionada pelo jogo reforça a relevância do tema abordado e nos coloca diante de uma questão fundamental: como encaramos o mal?


Estamos numa época em que, por mais estranho que possa parecer, há quem duvide da persistência e relevância de jogos que investem em campanhas single player. Felizmente, as boas histórias continuam permeando o universo dos videogames e Wolfenstein II: The New Colossus é prova disso. O título, desenvolvido pela MachineGames e publicado pela Bethesda em 2017, carrega no investimento político sem medo de errar. Trazido recentemente ao Switch pela Panic Button, agora os fãs da Nintendo também podem verificar a importância da narrativa em um dos melhores shooters da geração.

A banalidade do mal

Em 1963, a filósofa alemã (e judia) Hannah Arendt acompanhou, como correspondente do New York Times, o julgamento de Adolf Eichmann, militar nazista que foi responsável por transportar judeus aos campos de concentração e execução, participando ativamente da implementação da Solução Final, o assassinato em massa do povo judeu. Arendt, que fugiu da Alemanha durante a guerra, esperava encontrar no julgamento um ser monstruoso. No entanto, quando se viu frente a frente com Eichmann em Jerusalém, local do processo, ela se deparou com alguém bem diferente da imagem que tinha criado. Eichmann era um homem culto, que acreditava ter vivido de acordo com os princípios morais elaborados por Kant e que tinha pudores relacionados à literatura — um exemplo: para ele, Lolita, de Vladimir Nabokov, era um livro imoral.

Diante dessa situação, Arendt elaborou o conceito de banalidade do mal, tema que permeia todo o livro que escreveu sobre o julgamento (Eichmann em Jerusalém) e parte de sua obra política posterior. Com esse conceito, Hannah Arendt procurava mostrar que é sedutor acreditarmos na dualidade absoluta presente no comportamento das pessoas. Existem os bons e os maus, assim pensamos. No entanto, o que ela percebeu no processo que culminou na pena de morte de Adolf Eichmann, foi que ele realmente não se considerava um vilão. Como ele mesmo dizia, tinha vivido de acordo com a moral kantiana, só fez aquilo que acreditava poder se transformar em uma lei universal. Dito de maneira mais direta, Eichmann alegou que apenas cumpriu ordens de seus superiores e, por isso, não acreditava que encarnava uma representação do que existe de errado. É justamente essa a banalidade do mal: acreditarmos que nossas ações são apenas parte de algo maior, mas que não somos realmente responsáveis pelo que fazemos. E relativizando o mal, relativizamos a nós mesmos.

Wolfenstein II; The New Colossus tem uma abordagem diferente do mesmo tema. No jogo, o maniqueísmo representado pelos personagens é, não só evidente, como caricato. Mas talvez exista um propósito para isso. Antes de continuar, contudo, tenho que deixar um aviso: vou apresentar alguns exemplos diretos da narrativa do game e não é possível fazer isso sem spoilers. Por isso, a partir deste ponto, leia por sua conta e risco.

Violentos por natureza

Desde os momentos iniciais, nos vemos envolvidos pela questão do nazismo e de suas consequências. Como já afirmei na análise do jogo, a série Wolfenstein é uma distopia que apresenta um universo alternativo, um mundo em que os nazistas venceram a Segunda Guerra Mundial. Em Wolfenstein II, jogamos como William Joseph Blazkowicz, personagem que sofre nas mãos dos nazistas e de sua ideologia desde a infância. O game utiliza técnicas distintas para contar a história de Blazkowicz e da vitória dos nazistas, passando por cartas, documentos e lembranças do passado.

Como disse antes, a imagem do mal encarnado nos nazistas aparece de forma caricata em vários momentos, como por meio da General Engel, inimiga maior da resistência. Em um dos momentos iniciais do jogo, por exemplo, ela mata Caroline Becker, uma das líderes do movimento revolucionário, decepando sua cabeça e a esfregando na cara de Blazkowicz em meio a gargalhadas, uma cena ao mesmo tempo brutal e digna de um filme trash da pior qualidade. No entanto, existem momentos em que essa relação com o mal é melhor desenvolvida.
Os documentos encontrados nos ajudam a entender a distopia em que estamos.

Problemas de família

Apesar da história se passar em 1961, somos transportados em flashbacks para a infância do personagem principal. Nesses momentos, vemos o sofrimento do menino que tinha um pai anti-semita e que, tendo uma mãe judia, via este pai bater na esposa em sua frente, era humilhado por ter uma amiga negra e obrigado a atos brutais, como ter que atirar em um cachorro.

Na cabeça do pai, tudo isso era para a educação da criança. Quando Blazkowicz cresce e se une à resistência, o pai entrega a própria esposa aos nazistas por considerá-la culpada pelo caminho escolhido pelo filho. É justamente essa descoberta que leva o protagonista a um embate com o pai. Como jogadores, não temos opção: devemos matá-lo. E a falta de remorso de Blazkowicz, seu alívio por ver um término na relação doentia que tinha com seu pai, é também o nosso alívio.
O jovem Blazkowicz e seu pai.

Os desenvolvedores foram corajosos em desenvolver essa relação familiar e suas circunstâncias de maneira tão direta. O peso da narrativa ganha força justamente nos momentos em que esses encontros tortuosos ou afetivos são mostrados e explorados. Blazkowicz, por exemplo, está próximo de experimentar a paternidade (Anya, sua parceira, está grávida de gêmeas). E é também por elas que ele luta. Por isso vemos, em seus pensamentos e reflexões sobre o passado, a necessidade que ele tem de ser um pai melhor, de ser um pai de verdade, de legar para as filhas um futuro digno e verdadeiro. No meio da ação, nosso protagonista parece uma máquina de guerra, mas nas entrelinhas lemos o que há de mais humano nele: seus medos e desejos reais.

Outro exemplo de como a história ganha corpo quando se aproxima das relações familiares está no momento em que Sigrun Engel, filha da General Engel, passa para o lado da resistência. Depois de sofrer nas mãos da mãe e ser humilhada por ela, Sigrun opta por ajudar Blazkowicz e seus companheiros, se une à resistência e acaba se tornando vital na ação que culmina com a morte da própria mãe. Em muitos momentos, mesmo estando junto com a resistência, Sigrun tem que lidar com a piadas e maus-tratos dos heróis (que não são apenas bonzinhos, afinal). Até que ela explode de raiva e exige não ser mais chamada de nazi, palavra e ideologia da qual ela queria (e consegue) se afastar.


Necessidade de mudança

A história de Wolfenstein II: The New Colossus é parte tão importante da experiência quanto a jogabilidade viciante e fluida, as armas destruidoras, o universo tecnológico exageradamente avançado e o clima de tensão que cerca todo o jogo. Apesar de exagerar na exploração do aspecto vilanesco de alguns personagens, incluindo aí o próprio Hitler — que aparece em cenas bizarras mostrando um total e absoluto descontrole —, Wolfenstein II entrega uma crítica severa à crença da superioridade de uns em relação aos outros.

Em agosto de 2017, apenas dois meses antes do lançamento de Wolfenstein II, grupos de supremacistas brancos e grupos antirracismo entraram em confronto em Charlottesville, nos Estados Unidos. Às vezes, parece que o nazismo e suas consequências ficaram para trás. Mas situações como essa mostram que a discussão presente em The New Colossus é atual e pertinente. O risco não é esquecermos do passado, mas sim lembrarmos dele e, a despeito disso, aceitarmos a falta de empatia e a ausência de compaixão, abraçando a banalidade do mal. 

Revisão: Gabriel Bonafé

Pesquisador nas áreas de estética e cibercultura com Mestrado em Cultura e Sociedade (UFMA) e Doutorado em Comunicação (UnB). Além de escrever sobre jogos, produz o Podcast Ficções e tem um blog sobre literatura, filosofia e cotidiano.
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