Perfil

Vivi é reflexivo e carismático como poucos personagens já feitos em videogames

Conheça a história e o conceito deste personagem de Final Fantasy IX que é o mais icônico Black Mage dos JRPGs.

Escrito por Hironobu Sakaguchi e desenhado por Toshiyuki Itahana — contando ainda com versão alternativa oficial de Yoshitaka Amano — Vivi Ornitier (ou “Vivi Orunitia”) é um dos personagens principais de Final Fantasy IX (Multi), desenvolvido e publicado pela Square Soft (hoje, Square Enix) para Playstation, em 2000. Esse jogo seria o último da franquia a ser produzido por Sakaguchi, criador da série Final Fantasy, e prestou muitas homenagens aos títulos anteriores, especialmente do NES e SNES. Entre essas homenagens, o próprio Vivi.


Um dos maiores ícones da série Final Fantasy, ao lado de personagens como Sephiroth e as mascotes da franquia (Chocobo, Moogle, Tonberry e Cactuar), e mesmo dos JRPGs em geral, o famoso design de Black Mage já estava presente desde o primeiro título da série, o qual representava uma das seis classes iniciais na qual se poderia optar para um dos quatro protagonistas do jogo. Esse design, com pequenas alterações, manteve-se para a mesma classe em Final Fantasy III (Multi) e Final Fantasy V (Multi), originalmente de NES e SNES, respectivamente, e nos títulos da série para essas plataformas sem sistema de classes (Job System), era comum haver personagens não-jogáveis (NPCs) usuários de magia com um design semelhante.




Na geração seguinte de consoles, apesar dos Final Fantasy VII (Multi) e Final Fantasy VIII (Multi), e já parcialmente o VI de SNES, terem se afastado do estilo medieval fantástico dos Final Fantasy de NES e SNES, causando a ausência de Black Mages tradicionais, Final Fantasy IX, escrito e produzido por Sakaguchi, foi construído com base em reflexões sobre os títulos anteriores da série desde o primeiro. Desse modo, e como afirmado em entrevista à IGN (2000), isso foi feito a fim de se tornar o ideal do que um Final Fantasy deveria ser para Sakaguchi, e, por consequência, tornar-se seu Final Fantasy favorito, ultrapassando seu amado Final Fantasy V.

Vivi é um dos elementos de Final Fantasy IX que não deixa dúvidas quanto ao seu parentesco de design em relação aos antecessores dessa fantasia final. O chapéu, os equipáveis, a baixa estatura, as habilidades mágicas de classe e a icônica face sombria com olhos brilhantes estão todas lá, mas junto de tudo isso, e diferente de todos os Black Mages até então na franquia, há muita personalidade e um belo carisma próprios e muito bem escritos e animados no decorrer da trama. Confira nos tópicos a seguir as peculiaridades artísticas e narrativas desse personagem que o fazem tão especial para os fãs de Final Fantasy ou mesmo de JRPGs em geral.



Conceito, desenho e animação

A classe Black Mage, tal como implementada em Final Fantasy, já era corrente em jogos de RPG na década de 1980, e basicamente tratava de habilitar um personagem a manipular elementos naturais para invocar poderes como bolas de fogo, raios, nevasca etc. Mas a série de Sakaguchi trouxe elementos peculiares para tornar essa classe icônica na franquia, como denominações particulares para esses poderes e suas respectivas evoluções.

Quanto às peculiaridades visuais, trata-se das características já mencionadas no tópico anterior que guardam semelhanças com o personagem da década de 1980 Orko, da série animada He-Man, também chamado de “Gorpo” em Masters of the Universe Bible (1982). E quando às peculiaridades mecânicas, destaca-se especialmente nomenclaturas que se tornaram clássicas para poderes únicos como Ultima, Meteor e os elementais básicos com suas respectivas evoluções para fogo, trovão e gelo: fire, fira e firaga; thunder, thundara e thundaga; e blizzard, blizzara e blizzaga. Em títulos posteriores, há ainda algumas variações ou adições evolutivas a essas habilidades, como firaja, thundaja e Blizzaja.

Contudo, antes de Final Fantasy IX, um Black Mage não possuía alguma personalidade própria, normalmente eram não muito mais que uma roupa e ofício para um dos protagonistas ou um NPC com poucas falas que fazia algum comentário ou vendia magias ou outros itens de forma bastante direta. Quando muito, os Black Mages exerciam papéis de personagens sábios, relacionados à magia e/ou a relíquias dos mundos da série. Algo notável, por exemplo, no vilarejo dos Black Mages de Final Fantasy II (Multi).





Isso claramente mudou em Final Fantasy IX. O conceito artístico do Vivi de Yoshitaka Amano, presente na coleção de livros The Sky, particularmente no Vol. 3, mostra como esse mago possuía muitas características próprias, mas esse design detalhado e mais sério não foi incorporado no jogo. No início do último Final Fantasy de PS1 assume-se o controle de Vivi com uma aparência que mescla o estilo clássico dos Black Mages com uma ingenuidade e delicadeza infantis.

Logo é nítido o carisma próprio do personagem em escolhas de design e animação. Como descrito no segundo volume da Ultimania da série, Vivi aparenta fisicamente ter 9 anos de idade, tem apenas 121 cm e possui traços mais arredondados. Como abordado por Chris Solarski, em seu livro Interactive Stories and Video Game Art: A Storytelling Framework for Game Design, de 2017, essas escolhas circulares para design de personagens não costumam ser aleatórias, já que formas desse tipo, especialmente em personagens menores, sugerem sentimentos mais positivos, dinâmicos e joviais, algo que o autor explora em casos como os do design de Mario, de formações de exércitos em Total War, de avatares de Final Fantasy XIV e até de emoticons.

Somado a esse estilo de desenho, a animação do personagem em sua forma de andar e de arrumar seu grande chapéu (o qual cai para trás, diferente do dos outros Black Mages), bem como outras mais específicas, como de quando literalmente “congela de frio”, mostra um lado seu levemente atrapalhado e infantil, contrastados com a inexpressividade de seu rosto e a seriedade e a curiosidade próprias das falas formais, inocentes e indagativas do personagem.




Esses traços físicos e comportamentais do personagem são ótimas escolhas para transparecer ao jogador, de forma empática, as inquietações do personagem sobre si e o mundo que o rodeia, afinal, de início ele parece uma criança perdida em um imenso reino de um imenso mundo e sem saber o que é e seu propósito e lugar em tudo aquilo que o rodeia, o que condiz com a origem de seu nome, corruptela de "viver" em espanhol ou conjugação pretérita de "vivere" (italiano), ao mesmo tempo que possivelmente aludindo ao símbolo de voodoo "vévé". Já seu sobrenome, assumindo que seja "Ornitier" (e não "Orunitia"), pode ser derivado do latim ornitharius (por sua vez, de origem grega), que significa "pertencente às aves".

Essas suas dúvidas existenciais, constantes no decorrer da trama, são mais justificadas um pouco mais à frente no jogo (ainda na primeira parte, CD 1 de 4) por ele não ser um humano, mas uma espécie de “máquina” que possui, na verdade, algo em torno de seis meses de vida, só que antes mesmo que o jogador saiba disso o personagem já fornece uma justificativa temporária por meio da execução desse conceito infantil. Vejamos a seguir como se desenrola o argumento da escrita desse personagem (atenção para spoilers!).



A história de Vivi

O papel de Vivi na trama de Final Fantasy IX pode ser definido por meio de dois processos que se desenrolam juntos: um processo de descoberta e aprofundamento em questões existenciais e contextuais sobre si mesmo e os Black Mages; e um processo de progressiva autoconfiança desse personagem em consonância com um crescente sentimento de pertencimento a um grupo de amigos (os demais personagens jogáveis do jogo) e aos Black Mages.

O personagem segue um trajeto em que passa boa parte do percurso se questionando sobre o que ele é e o seu propósito no mundo. Ainda no início do game, descobre que há outros Black Mages como ele, mas que não aparentam ter livre-arbítrio, e sim serem comandados por seus criadores. Na mesma ocasião, descobre que se trata de uma raça fabricada para servir como arma de guerra, mas que, por alguma razão, ele foi um projeto defeituoso nesse processo, e também o único aparentemente não-adulto.




Já nessa passagem, em uma das memoráveis cutscenes do título, mostra-se, porém, que os outros Black Mages podem ter seu controle comportamental abalado, vindo a ter liberdade própria como Vivi. Esse fato é explorado, porém, apenas posteriormente no jogo, quando o jogador chega em Black Mage Village, uma homenagem ao já mencionado vilarejo de Final Fantasy II. Lá, Vivi encontra vários outros Black Mages que vivem livres secretamente e aprende muito sobre si mesmo e os demais de sua espécie.

Vivi descobre que os Black Mages estão destinados a parar após cerca de um ano, assim como já aconteceu com outros (e por isso outros foram enterrados em um cemitério do vilarejo). Momentos depois, o pequeno mago se questiona sobre a diferença entre “parar” (to stop) e “morrer” (to die). Sabe que ele e os demais Black Mages não são exatamente seres vivos, mas é convencido por seus amigos, especialmente pelo protagonista da party, Zidane, que apesar disso ele não apenas parará, mas também morrerá.




Vivi conclui que, diferente de outras máquinas que pararão sem nunca ter tido liberdade para viver (fazer amigos, experimentar coisas, conhecer lugares etc.), ele pôde fazê-lo e, portanto, quando chegar o momento de “parar” (ou seja, perder a função para a qual foi criado: usar magia), este também será o momento em que “morrerá” (ou seja, deixará de viver). Portanto, diferente de outros de sua raça, Vivi gozou de liberdade para dar sentido à sua breve estadia no planeta.

O jovem mago, então, cada vez se torna mais autoconfiante no decorrer da trama sobre o que ele é, também mais corajoso para defender seus amigos e cada vez mais disposto a ajudar os demais de sua raça no que esteja a seu alcance para que eles aproveitem ao menos um pouco do que se chama “vida”. Por fim, no monólogo durante as cenas finais do jogo, é indicado que o tempo de vida de Vivi acabou, despedindo-se de seus amigos com as seguintes palavras: “Adeus, minhas memórias farão parte do céu”.

Revisão: Icaro Sousa
Referências: Ultimania (livro), vol. 2; The Sky (livro), vol. 3; Interactive Stories and Video Game Art (livro); Final Fantasy Fandom; gamerantIGN

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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