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Análise: A Memoir Blue (Switch) é uma singela e breve poesia sobre o que somos e a nossa infância

Apesar do gameplay pouco aproveitado, este é um jogo que pode surpreender pela forma como diz muito com pouco e em um curto espaço de tempo.




Desenvolvido pela Cloisters Interactive e publicado pela Annapurna Interactive, A Memoir Blue é um graphic adventure indie com mecânicas simples de point-and-click em um tom sucinto e lírico de “poema interativo” sobre uma atleta premiada em busca de se reconectar com sua infância e sua mãe. Com maior foco em direção de arte e som, a proposta envolve contar uma história de modo breve, interativo e metafórico, com toques de surrealismo e minimalismo e sem nenhuma fala senão das letras das canções que perpassam algumas das cenas do jogo.

Uma poética sinergia entre o design narrativo e o design audiovisual

Enquanto uma história interativa movida essencialmente pelo desenvolvimento de personagem, A Memoir Blue não usa nenhum texto ao longo do jogo e estabelece uma comunicação surrealista sensível (no nível do audiovisual) entre os seus personagens mudos e o jogador, tal como ocorre em Gris, dirigido por Conrad Roset. Contudo, em A Memoir Blue, você não possui controle direto do personagem, sua história é consideravelmente mais curta (cerca de uma hora), tal qual um breve poema, e se move em sintonia com singelas canções lentas, com ritmo bem marcado e letra em algumas partes.

A poética do jogo se nota não apenas pelo poder de condensar muita coisa em poucas metáforas visuais, tornando a jornada curta, mas também pela interatividade musical em alguns elementos do cenário, lembrando um pouco o clássico Flower, dirigido por Jenova Chen, só que de forma bem mais simplificada, já que aqui não é o foco da obra. Na verdade, algo parecido acontece na arte visual: a direção criativa de Shelley Chen levou A Memoir Blue a ter uma trama que, apesar de ser guiada sozinha, depende de uma constante intervenção do jogador para construir ou modificar parte de seus cenários.


A estética do jogo combina arte desenhada à mão com modelos em 3D em uma animação simples, um tanto rígida, no caso de Miriam (protagonista), que move a trama, mas funcional o suficiente para o jogador se conectar a ela. O design tem uma boa dose de surrealismo usado de forma inteligente em um combo com música ambiente suave, mas expressiva. Vários elementos aquáticos (peixes, barco etc.) parecem invadir a realidade de Miriam no decorrer de toda sua jornada introspectiva e refletem o fato de ela ser uma nadadora profissional, enquanto símbolo, ou memórias de infância de quando ia com sua mãe ver animais aquáticos.

Contudo, a estética surreal não aparece apenas para dar vida às memórias e à carreira de Miriam, mas também para comunicar coisas em substituição da linguagem escrita/falada, como quando, ao trocar a estação de rádio, aparecem desenhos (relativos aos sons ouvidos) em forma de representação de ondas de rádio. Outro uso a se destacar é o de passar a sensação de momento de Miriam. Um bom exemplo é uma cena fantástica em que a tela escurece progressivamente e, aliada a uma direção de som ao mesmo tempo sutil e agoniante, é possível sentir o pavor da nadadora, bem como sua sensação de estar perdida embaixo d’água, mesmo que, na prática, ela só precisasse nadar em linha reta até o outro lado da piscina.


Seguindo a tendência de Design por Subtração e de art games como os da Thatgamecompany e Playdead, a interface de A Memoir Blue é extremamente simples ao ponto de ficar quase imperceptível a transição de momentos cinemáticos e momentos jogáveis senão pelo pointer que aparece para o jogador movimentar com o direcional. Além disso, o menu é minimalista e integrado com o ambiente do jogo.

Um último aspecto visual a se destacar é a dualidade ficcional entre a protagonista em modelo 3D, ligada ao presente e ao “real”, e os personagens em traço de desenho à mão que a circundam em sua aventura. Esses personagens em estilo de desenho se opõem à realidade e/ou ao presente, mas em algum momento se conciliam com o presente e a realidade em uma metáfora interessante e impactante, mesmo que executada de uma forma previsível.






Gameplay muito acessível, simples e limitado

Embora o audiovisual de A Memoir Blue seja um tanto simples, é possível ver profundidade em seu design, mas o mesmo não pode ser dito do gameplay, que é simples e, na maior parte do tempo, também pouco significativo; ou seja, o que podemos chamar de “simplório”. Como Katie Salen e Eric Zimmerman mostram no livro Regras do Jogo, um jogo (eletrônico ou não) cria uma interação significativa (meaningful play).

Em alguma medida isso ocorre no jogo da Cloisters Interactive; A Memoir Blue não é desprovido de semântica, mas na maior parte do tempo a sensação de gameplay é de que o jogador precisa simplesmente fazer ações burocráticas, como se estivesse meramente fazendo ações equivalentes a virar páginas de um livro.


As aventuras de Miriam trazem desafio praticamente nulo ao jogador, seja ele mental ou físico, mas esse não é o problema, pois se trata de um projeto claramente com maior foco na “representação de algo” do que na “luta por algo”, para usar os termos de Huizinga, no livro Homo Ludens. O problema está em que as mecânicas de point-and-click raramente trazem interações interessantes que agregam na mensagem do jogo. Muitas vezes, as escolhas de mecânicas parecem arbitrárias e, como são sempre simples (utilizando um único botão e o direcional), possuem um level design limitadíssimo e são em nada desafiantes, também podem facilmente se tornar chatas ou, no mínimo, desnecessárias e indiferentes.

Há exceções: a interação com o rádio e com objetos que formam melodias ao clicar em alguns elementos do cenário são interessantes para a proposta, e até o mero ato de nadar no meio da escuridão embaixo da água (no trecho já mencionado no tópico anterior) é significativo no sentido de intensificar a experiência e clarificar o que o jogo quer comunicar. Apesar de momentos como esses, acredito que, de modo geral, tenha faltado criatividade e engenho na maior parte do gameplay.


Tudo isso são coisas que deveriam ter sido cuidadosamente pensadas, tal qual um poema, principalmente por se tratar de uma obra curtíssima e linear. Aliás, embora talvez se tenha evitado propositalmente o uso de palavras escritas, em prol da experiência audiovisual e do minimalismo de interface, poderia ser interessante brincar mais diretamente com a letra das canções durante as interações do jogo, ou ao menos disponibilizar a letra para complementar a breve história; se não in-game, ao menos no menu.

Por fim, acredito que também não tenha sido bem pensado o papel do jogador: ora o jogador se sente sendo Miriam, ao nadar ou ao rasgar cartazes que estão à sua frente; ora se sente sendo a própria natureza, como ao usar o pointer para fazer o Sol se pôr; e por vezes não parece ser nem uma coisa nem outra. Nesse sentido, o design de experiência do usuário (design de UX) mostra-se pouco coeso e, nessa alternância de tipos de perspectivas, não contribui muito para uma imersão sólida e coerente em um mundo ficcional onde o jogador não sabe qual é o seu lugar.

Um singelo poema de um breve mergulho no passado

A poética interativa de A Memoir Blue é sensível de uma forma sutil e singela em seu audiovisual, ainda que seja tecnicamente limitada e insipiente em level design e animação. Trata-se de um título curto para os videogames, mas, tal qual um curta-metragem para o cinema ou um poema ou conto para a literatura, não há problema algum em sua extensão.

O enredo e a progressão são modestos, mas a mensagem é dita de forma sucinta, onírica e expressiva, e nisso o jogo é bem-sucedido. O problema maior, porém, é ter usado pouco da interatividade a seu favor. A Memoir Blue é recomendado para quaisquer fãs de art games em estilo de graphic adventure, os quais certamente conseguirão tirar o melhor dessa experiência se tiverem em mente que se trata de uma jornada curta e sem grandes pretensões.

Prós

  • Uma boa ligação entre o design narrativo e o audiovisual;
  • Mensagem sensível bem colocada em um formato sucinto, expressivo e acessível;
  • Alguns momentos interativos interessantes para a proposta;
  • Metáforas visuais bem aproveitadas para o enredo;
  • Interface bem limpa e minimalista.

Contras

  • Mecânicas e level design muito limitados e pouco aproveitados para agregar na proposta;
  • Animação um tanto rígida da protagonista e alguns outros fatores técnicos visuais que podiam ser mais bem polidos;
  • Design de UX poderia ter sido mais bem-pensado e coeso.
A Memoir Blue - Switch/PS4/PS5/XBO/XBSeries - Nota: 7.5
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Annapurna Interactive

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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