20 anos de Pokémon, 20 lições de Game Design - #05: Complexidade emergente

Por mais simples que a história e mecânicas básicas de Pokémon sejam, a forma como elas interagem entre si pode dar origem a sistemas muito mais complexos.

em 05/02/2016
Você, provavelmente, já ouviu falar ou até mesmo jogou go. Considerado um dos “grandes jogos da história”, sua influência só pode ser comparada à do xadrez. Diferente de seu primo ocidental, entretanto, go é muito mais simples. Em vez de várias peças diferentes, cada uma com suas próprias regras de movimentação, o clássico jogo de tabuleiro chinês possui apenas um tipo de peça e poucas regras.




Entretanto, mesmo sendo mais complexo, o xadrez foi dominado pelos computadores desde 1997. Em contrapartida, apenas em 2016 uma máquina conseguiu derrotar um mestre de go. Apesar de toda sua variedade mecânica e profundidade, para os PCs, o xadrez é muito mais limitado e previsível.

O xadrez, de fato, tem uma complexidade inata maior que go, com um ônus de conhecimento necessário para se aprender a jogar muito maior — mais regras, mais peças, mais mecânicas. Entretanto, em sua simplicidade, go acaba criando padrões muito maiores e mais imprevisíveis através das infinitas possibilidades de interações que permite. Go tem uma complexidade emergente maior, sendo um dos melhores exemplos do conceito no mundo dos games… mas não tanto quanto Pokémon.

721 Pokémon, quintilhões de possibilidades

Pokémon tem sua dose de complexidade inata ponderada através da profundidade. Para os jogadores que não se aprofundam em suas mecânicas avançadas, a série é simples e intuitiva. Entretanto, mesmo em seus níveis mais básicos, os jogos da franquia são dotados de uma complexidade emergente quase incomparável.

Ignoremos por alguns minutos effort values, abilities e outros recursos usados por jogadores experientes no cenário competitivo. Vamos isolar apenas os elementos mais básicos e comuns a todas as gerações: cada equipe pode ter até seis Pokémon, cada um deles com quatro golpes diferentes. Uma combinação simples sem repetições entre todos os Pokémon e golpes disponíveis permite que 216.217.804.439.226.231.642 equipes diferentes sejam formadas sem repetições — uma quantidade absurda de possibilidades, na casa das centenas de quintilhões.

Claro, nem todos Pokémon ou golpes têm utilidade. Contudo, mesmo que apenas 0,000000001% dessas combinações tenha valor, ainda estamos falando de mais de um bilhão de combinações diferentes. Agora, reflita um pouco e pense quantas ordens de magnitude maior esse número seria se incluíssemos EVs, IVs, habilidades, itens e tantas outras mecânicas avançadas da série.

Cada um desses elementos é simples de se entender individualmente. Entretanto, o número insano de interações entre eles faz emergir padrões muito mais complexos. Não é à toa que montar uma equipe “perfeita” é tão prazeroso: essa complexidade emergente exige que se pense duas vezes e dá valor às escolhas do jogador. São interações significativas dentro do círculo mágico montado pelo game.

A cada nova geração, a complexidade inata da franquia aumenta linearmente, com mais criaturas, golpes, tipos, itens e mecânicas. Em contrapartida, graças à firme integração entre seus elementos, a complexidade emergente cresce de forma geométrica, fazendo inveja em qualquer go ou xadrez da vida.

Narrativa emergente

A complexidade emergente é algo até que bastante discutido dentro da área de game design sob a perspectiva mecânica. Entretanto, Pokémon é um ótimo exemplo de emergência de padrões complexos através da união de elementos narrativos simples — uma narrativa emergente, digamos assim.

Sejamos sinceros: a história da franquia não é só simples, é simplória. Desde Red & Blue as mesma trama é usada e abusada com poucas variações. Você é escolhido para se tornar um Treinador Pokémon, deve catalogar todos os monstrinhos enquanto vence os ginásios para avançar e derrotar a nova Equipe Rocket do pedaço no meio do caminho. O enredo cumpre seu papel e possui personagens carismáticos, mas não ganharia nenhum prêmio de melhor roteiro.
Pelo menos é melhor que o anime.

Apesar dessa trama confinada, a série conseguiu, com o decorrer dos anos, criar uma mitologia própria através de seus… Pokémon. Cada monstrinho tem uma pequena descrição na Pokédex, com alguma curiosidade sobre ele, peso, altura e tipos. São entradas simples, muitas com no máximo duas linhas.


Mas são mais de 2000 descrições simples — duas para cada Pokémon, com criaturas antigas recebendo novas entradas a cada geração e remake. Esses inúmeros elementos narrativos básicos estão todos interligados entre si. Ao se unir essas pequenas histórias, um padrão muito mais complexo do que sua trama simplória pode demonstrar acaba emergindo.
Outros jogos fazem uso de uma abordagem narrativa similar. Um exemplo recente e cultuado é Dark Souls, que tem muito de sua ambientação e história espalhadas em várias descrições curtas de itens. As comunidades de ambas franquias, claro, tem grande ação para que essas histórias realmente apareçam e as estendem, com teorias, fanfics, creepypastas e wikias.


Pokémon pode não ter uma trama elaborada e cheia de reviravoltas, mas quem precisa disso quando se tem uma verdadeira mitologia movendo a história, com mitos de criação, relações entre diferentes espécies, criaturas com efeitos gigantescos no mundo e muitas outras coisas? Não é à toa que quando várias pessoas jogaram Red & Blue ao mesmo tempo, pelo menos umas três religiões surgiram da brincadeira.

Revisão: José Robson Júnior
Capa: Felipe Araújo
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