Discussão

Criações musicais com o Nintendo Labo: é possível fazer música séria com papelão?

Longe da experiência tradicional dos jogos, o Nintendo Labo mostra o melhor que possui incentivando a criatividade dos apaixonados pela música.

Quem assistiu a apresentação do Wii Music na E3 de 2008 não esquece. E, infelizmente, isso não significa que as lembranças são boas. A incursão da Nintendo no mundo da música dividiu opiniões. Muitos elogiaram a tentativa de investir em um produto que mesclava os controles de movimento do Wii com uma experiência musical intuitiva. Outros, contudo, achavam o jogo (se é que podemos chamá-lo assim) limitado e repetitivo, sem entregar o que prometia. O fato é que as críticas negativas superaram o entusiasmo dos fãs, talvez decretando o fim da relação entre os consoles da Nintendo e os jogos/aplicativos para criação sonora. Mas o Nintendo Labo veio para mudar isso - e já traz resultados bem interessantes.

Não é sobre o papelão

A primeira coisa a falar é que o Nintendo Labo não é só um monte de papelão. Sim, o dito cujo está lá, mas ele não é o foco. Apesar da chuva de memes no dia do anúncio, pouco a pouco as pessoas conseguiram perceber que esse produto é menos parecido com Lego e mais próximo de uma plataforma de programação. A partir do software e peças originais é possível criar customizações e pensar em novos usos para os kits originais. E é aqui que entra a música.

Como tudo o que é criado no Nintendo Labo tem a ver com os componentes do Switch, é possível combinar a tela, os Joy-Con e os conjuntos de papelão para emular uma série de coisas, inclusive instrumentos musicais. Recentemente Ariana Grande se apresentou no programa do Jimmy Fallon. Nessa performance, Fallon e os membros da banda The Roots utilizavam o Nintendo Labo no lugar de instrumentos tradicionais. Como a apresentação não foi ao vivo é difícil ter a real dimensão do que foi executado. Mas, em entrevista posterior à gravação, o apresentador revelou detalhes sobre a performance e o trabalho de customização, ressaltando a liberdade de criação permitida pelo produto da Nintendo.


Uma plataforma de criação acessível

É verdade. O Nintendo Labo é bem caro, principalmente para nós, brasileiros, que não temos suporte oficial da Big N. No entanto, é estimulante o fato de que qualquer pessoa com o produto possa, pouco a pouco, inventar e criar coisas novas. No caso da música, em especial, vejo um potencial gigantesco. E é esse o sentido de acessibilidade que quero empregar aqui. O Nintendo Labo é acessível porque é intuitivo e prazeroso de utilizar. Diferentemente do Wii Music, que permitia uma experiência de criação muito restrita, essa nova plataforma leva o usuário a explorar as possibilidades de sua imaginação. O que é possível criar com ele? Quantos instrumentos e sons podemos emular? Ainda não descobrimos, e isso é o mais encantador.

Músicos amadores e profissionais certamente usufruirão mais dessas possibilidades. Mas nada impede que outras pessoas consigam aprender e se interessar por música justamente utilizando o Labo. Sob a sombra de um brinquedo, o que temos nessa nova experiência da Nintendo é uma síntese do que o público vê como marca da empresa, algo que pode ser resumido em poucas palavras: vontade de inovar. O Nintendo Labo não foi pensado exclusivamente como uma plataforma musical, mas tanta coisa interessante já tem sido feita com ele que pouca gente duvidaria de sua potencialidade nessa área. Por outro lado, os experimentos que temos visto refletem um real interesse em produzir música ou é tudo apenas brincadeira?


Música de verdade

A partir da década de 1950 as experiências de vanguarda com a música começaram a reconfigurar nossa relação com os sons. Por muito tempo existiu um purismo na forma como as pessoas viam essa arte e sua criação. No geral, se defendia que a música deveria ser feita por artistas de formação e com instrumentos profissionais. Imaginar que um leigo pudesse criar harmonias e melodias e, mais ainda, sem acesso a um instrumento tradicional (piano, violino, flauta etc.) era algo improvável.

Foi então que compositores como John Cage (1912-1992) e Pierre Schaeffer (1910-1995) abriram espaço para uma nova reflexão sobre o fazer musical. Eles deslocaram a percepção comum do que é música e do que é um instrumento e passaram a considerar que qualquer coisa que fizesse som poderia ser usado para a tarefa artística. Nas últimas décadas do século XX, com o desenvolvimento da tecnologia e dos instrumentos eletrônicos, esse espaço se ampliou ainda mais. E hoje dificilmente alguém julgaria que um som gerado por computador não pode ser utilizado como música. Apesar disso, no caso do Nintendo Labo existe o “problema” de ele ter sido criado como um brinquedo. Mas isso impede que as pessoas possam utilizá-lo como uma ferramenta de criação? Acho que não.


Nietzsche escreveu que sem música a vida seria um erro e por isso somos tão afeitos aos sons e suas possibilidades. Em qualquer lugar que seja possível buscamos nos expressar por meio de melodias e ritmos. O Nintendo Labo oferece uma plataforma de produção e experimentação rica em possibilidades. Para músicos e apaixonados por essa arte é revigorante perceber que, mesmo em uma empresa que tem como foco o entretenimento, existe um investimento real em um produto que busca estimular o aprendizado e a inovação.

É possível fazer música séria com o Nintendo Labo? Sim. Agora, quanto engajamento dos músicos a plataforma conseguirá atrair, é difícil mensurar. De qualquer forma, acredito que ainda teremos boas surpresas nessa área. É só mantermos os ouvidos atentos.

Revisão: Pedro Franco

Pesquisador nas áreas de estética e cibercultura com Mestrado em Cultura e Sociedade (UFMA) e Doutorado em Comunicação (UnB). Além de escrever sobre jogos, produz o Podcast Ficções e tem um blog sobre literatura, filosofia e cotidiano.
Este texto não representa a opinião do Nintendo Blast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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