Analógico

Triangle Strategy (Switch) e o papel da votação no gameplay e no enredo de jogos políticos

Mecânica de votação pode ser algo revolucionário para jogos políticos. O último jogo do Team Asano mostra o quanto é algo promissor.


Uma das coisas mais interessantes no design narrativo de Triangle Strategy, projetado por Tomoya Asano, é a sua abordagem político-militar. Talvez essa afirmação possa ser previsível para você, caro leitor, já que RPGs táticos costumam ter narrativa e ambientação político-militar desde os primeiros RPGs táticos japoneses da década de 1990, os quais definiram esse subgênero tal como o conhecemos. Sobretudo, estamos falando das franquias Fire Emblem e Ogre Battle/Tactics Ogre, encabeçadas por Shouzou Kaga e Yasumi Matsuno, respectivamente, séries essas muito presentes nos consoles da Nintendo. Contudo, nenhum TRPG antes de Triangle Strategy foi construído em torno de um dos mais fundamentais conceitos políticos: o voto. Essa peculiaridade é o que motiva este ensaio.


É bom deixar claro que você está lendo um ensaio de jogo (gaming essay), um estudo teórico e especulativo sobre game design e experiência de jogo, e não uma análise avaliativa dele ou algo que vá lhe dar dicas de como jogar. Caso seja de seu interesse, sobre Triangle Strategy (Switch) já escrevi Blast Test, Análise, Análise Resumida (para a nossa revista) e um Dicas e Truques. Aqui, procuro compreender como funciona o fenômeno da votação em Triangle Strategy em dois esquemas de design narrativo:
  • Votação como elemento do enredo;
  • Votação como mecânica de ramificação da trama.
Acredito que em todas essas duas “chaves de leitura” da votação, mesmo que com alguns problemas e limitações, Triangle Strategy trouxe algo interessante e frutífero para o futuro do design de RPGs táticos, e jogadores, críticos e designers de RPGs táticos, e mesmo os fãs de jogos com temática política em geral, podem tirar algum proveito das minhas observações.



Votação como elemento do enredo

Antes de ser uma mecânica, a votação é um acontecimento, algo que ocorre dentro de um mundo com história e personagens que votam em função de algo. Portanto, é interessante observar se a votação é coerente com o contexto em que se insere, e aí nós temos algumas questões a colocar:
  • Faz sentido a votação nesse mundo?
  • A história quer passar qual ideia com essa votação?
  • Dado um número seleto de personagens votantes, por que os personagens que votam são esses e não outros? Eles devem seguir quais regras?
Desde a antiguidade, as democracias são marcadas por um sistema de voto amplo, mesmo nos casos em que todo o “povo” não está envolvido (como já era na Grécia Antiga), mas isso não significa que outras formas de governo não possam ter votação, muitas vezes há, por exemplo, entre um grupo seleto de aristocratas. No caso das três nações da fantasia medieval de Triangle Strategy, o Reino de Glenbrook claramente é uma monarquia, com o poder centralizado na figura do Rei, embora com casas de nobres parcialmente independentes; o Grão-Ducado de Aesfrost parece ser o governo mais centralizado na figura do arquiduque Gustadolph; e o Sacro Estado de Hyzante tem seu poder dividido entre uma aristocracia de sete membros (os Saintly Seven).


Presumivelmente, há votações em Hyzante, mas o jogador, controlando Serenoa, herdeiro da Casa de Wolffort, só participa das votações envolvendo essa casa após sua emancipação do Reino de Glenbrook, que sofreu um golpe de estado do arquiduque Gustadolph. É interessante notar que as votações ocorrem só após o falecimento do pai de Serenoa, que liderava a casa. Portanto, o fenômeno da votação aparece como uma solução para conciliar diferentes pontos de vista diante de um conflito iminente.

Há duas interessantes premissas para a introdução desse elemento no enredo. Primeiramente, a perda de um monarca. Embora Serenoa seja seu herdeiro incontestável naquela ocasião, uma votação garantirá maior credibilidade nas decisões. Em segundo lugar, há partes envolvidas de outras nações: Frederica, a esposa de Serenoa, é da nobreza de Aesfrost e o amigo de Serenoa, Roland, é o príncipe de Glenbrook, e se refugia na Casa de Wolffort.

Mas se parece haver uma base razoável para a implementação do voto, por outro lado, há problemas na base para as regras da votação. É contestável o porquê de personagens coadjuvantes na trama política votarem também. Basicamente todos os 7 personagens fixos do exército votam, o que inclui servos de Frederica, Roland e Serenoa mencionados. Se a votação inclui servos, por que não outros também? Além disso, não há uma boa justificativa do porquê o próprio Serenoa não pode votar e nem vetar a decisão da votação, mas simplesmente ser passivo e obediente ao resultado. Sua única atuação é como alguém que pode persuadi-los. Essa situação não muda, independentemente do quanto poder Serenoa detenha, embora algumas raras vezes ele tome decisões sozinho, e o jogo também não deixa claro sobre quando é preciso uma votação e quando pode haver uma decisão monocrática.


Se considerarmos as duas premissas mencionadas, e que uma aristocracia permite votações pontuais, faz sentido a votação em Triangle Strategy, e a história parece querer persuadir o jogador de que Serenoa é um governante menos arrogante ao colocar os temas em debate e em votação, em contraste com a atuação de Gustadolph. É uma forma de persuasão política que foi bem estudada por Ian Bogost, em seu livro Persuasive Games: The Expressive Power of Videogames (2007).

Basicamente, a votação pode ser utilizada em jogos com temática política para oferecer uma experiência mais direta da imprevisibilidade da dinâmica política em uma democracia ou mesmo em uma corte aristocrática, algo impossível de se obter em um livro com temática análoga, como, por exemplo, As Crônicas de Fogo e de Gelo, de George R. R. Martin. Em Triangle Strategy, não foi tão bem planejado o funcionamento das regras e dos participantes da votação em coerência com o contexto. 

A votação possui uma boa justificação do porquê ocorre, mas uma arbitrariedade em como ocorre. Todavia, acredito que isso possa ser aperfeiçoado em novos jogos. Ademais, cabe notar que a mecânica cumpre uma função de ramificação narrativa de uma forma única, como veremos no tópico a seguir – e é aqui que está o “ovo de colombo” desse jogo.



Votação como mecânica de ramificação da trama

Narrativa não-linear em RPGs definitivamente não é algo incomum, embora aconteça com menor frequência em JRPGs. Contudo, a tendência de RPGs táticos é de que as ramificações da trama ocorram não por causa da votação, mas devido a decisões do próprio protagonista, em isolado. Assim são as decisões em Tactics Ogre, várias envolvendo dilemas morais e/ou políticos, e com consequência não só no fluxo dos acontecimentos, mas nos personagens recrutáveis para o exército. Em menor escala, isso também ocorre em alguns Fire Emblem. Na trilogia Fire Emblem Fates, por exemplo, há uma escolha decisiva no início sobre de que lado ficar em uma guerra, e em Fire Emblem: Three Houses, há uma escolha semelhante sobre em qual exército você treinará e liderará até o fim da história.

A função da mecânica de votação em Triangle Strategy não é apenas a de persuadir o jogador de algo (como vimos no tópico anterior), mas também de ramificar a história, normalmente em dois diferentes trajetos por vez (apenas a última votação é tripartite, dividindo em três possíveis finais, sem contar o final verdadeiro). O diferencial aqui está na complexidade e na imprevisibilidade desse sistema.

A complexidade desse sistema, em relação aos outros TRPGs, é flagrante pelo subsistema de persuasão presente em Triangle Strategy. Por meio dele, Serenoa pode debater com os membros do conselho e persuadi-los a votar como ele deseja. Isso exige do jogador habilidades de retórica e também do bom uso de informações e itens que tenha conseguido durante sua exploração. Infelizmente, esses debates costumam ser muito breves e diretos, a milhas de distância de algo como Disco Elysium. É claro que não era necessário tamanha complexidade, mas seria interessante que fosse um sistema de debate mais flexível e estratégico, pois acaba que, normalmente, é muito fácil persuadir a maioria dos personagens na votação. Então, o resultado final, de um ponto de vista estritamente mecânico, acaba não sendo muito diferente do que dar a Serenoa o poder de decidir sozinho.


Mas a complexidade não é tudo que há de interessante aqui, também há imprevisibilidade, que normalmente surge como uma das consequências de sistemas complexos. Muitas vezes, quando o jogador tenta persuadir um membro do conselho, ele não consegue convencê-lo de todo, podendo ter o efeito contrário do esperado ou podendo deixá-lo em dúvida, resultando em um voto imprevisível, cuja probabilidade pode tender mais para uma das opções de voto. Como os pensamentos (e a probabilidade) é opaca ao jogador, após debater com um personagem, só lhe resta a expectativa para que vote a seu favor. Somente no New Game + é possível ver mais detalhadamente a matemática do processo, o que também é uma experiência interessante.

O sistema de persuasão de Triangle Strategy envolve três parâmetros atrelados às “personalidades” dos personagens (incluso Serenoa). Os três parâmetros são quantificados por pontuação em Moralidade, Utilidade e Liberdade. Um personagem mais libertário pode tender para uma posição política diferente de um utilitarista, e assim por diante. O nível do protagonista nesses parâmetros também pode influenciar em alguns diálogos e ramificações da história. Por esse sistema já dá para perceber como ele tem um grande potencial para proporcionar o que David Howard (2022) chama de gameplay emergente codificado, aquele que emerge fora das pressuposições diretas dos desenvolvedores, mas para cumprir metas estabelecidas por eles no jogo.




Um exemplo de Triangle Strategy é invadir uma cidade. Mas como invadir? E então o jogo dá três opções para voto com resultados diferentes. O jogador pode, dentro das limitações da votação, estipular para si mesmo que sempre botará os libertários para votar o contrário que os utilitaristas votarem, por exemplo, ou estipular que sempre incentivará os personagens que parecem mais moralistas a votar em algo com a característica x. Esses tipos de experimentos resultarão em diferentes experiências de gameplay e testes sobre a coerência da trama em relação às posições políticas dos personagens.

Apesar das fragilidades do enredo, como mencionei, e apesar das consequências de muitas decisões não serem tão impactantes na história, é divertido o sistema de votação de Triangle Strategy, principalmente por passar a ideia de que o seu destino não está completamente em suas mãos. Você depende também do seu grupo e suas posições não são tão claras para você. Mas além disso, acredito que o principal destaque desse sistema é a sua potencialidade para futuras abordagens políticas. Há muito o que se aprofundar no sistema, e ele pode se tornar muito rico e variado em termos de gameplay emergente codificado.

É claro que, quando estamos falando de uma experiência de gameplay, é sempre um problema de “design de segunda ordem”, como lembram Salen e Zimmerman, no vol. 2 do livro Regras do Jogo (2020):
“Como designer de jogos, você nunca projeta diretamente o comportamento dos seus jogadores. Em vez disso, simplesmente projeta as regras do sistema. Como os jogos são emergentes, nem sempre é possível prever o resultado das regras. Como designer de jogos, você tenta resolver um problema de design de segunda ordem. O objetivo do design de jogos bem-sucedido é a interação lúdica significativa, mas a interação é algo que emerge do funcionamento das regras. Como designer de jogos, você nunca pode projetar a interação lúdica diretamente. Você só pode projetar as regras que dão origem à interação lúdica. Designers de jogos criam experiência, mas apenas indiretamente.”



Em um ensaio recente para a SUPERJUMP (2022), explorei como o conhecimento de história política e de política teórica podem contribuir para RPGs com foco em política. Acredito que o estudo da história política antiga, medieval e moderna possa contribuir, de diferentes formas, para criar algo mais coeso e verossímil dentro do mundo ficcional de alta fantasia de obras como Triangle Strategy, dando maior imersão narrativa. Por sua vez, conhecimentos mais profundos de política teórica podem gerar jogos que explorem votações com diferentes alinhamentos ideológicos e psicológicos (como aqueles presentes em Disco Elysium), estratégias de política internacional etc.
Muitos são os caminhos que essa mecânica de votação traz, e essa é, acredito, a maior contribuição de Triangle Strategy aos RPGs táticos, mesmo que pareça inicialmente algo tímido e singelo, frente a alguns dos TRPGs revolucionários que o inspiraram. Espero no futuro ver mais RPGs com foco político utilizando-a para ramificar tramas e complexificar decisões narrativas, e igualmente sendo usada como um recurso favorável ao enredo para contar histórias sobre revoluções de forma de governo (como de uma monarquia para uma república) ou sobre os mais diversos problemas que podem emergir da natureza do voto e do debate democrático.
Revisão: Janderson Silva

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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