Chronicle

Intelligent Systems Chronicles — Parte 2: a especialização da empresa na década de 1990

Do primeiro Fire Emblem até o último ano do SNES.

Esta série sobre a Intelligent Systems Co., Ltd., uma das principais e mais tradicionais empresas de desenvolvimento afiliadas à Nintendo, é uma dupla homenagem aos seus 35 anos e aos 30 anos de sua principal franquia, Fire Emblem.


Na semana passada, atravessamos quase toda a década de 1980 tratando sobre o surgimento da empresa, vários títulos importantes desenvolvidos em parceria — como Metroid em 1986 — e seu primeiro jogo tático, Famicom Wars, de 1988, que viria a marcar uma das especialidades da empresa, como veremos no decorrer de nossa jornada na década seguinte, 1990.

Para quem quiser conferir o capítulo anterior dessa história: Intelligent Systems Chronicles — Parte 1: os primeiros passos da empresa na década de 1980.

Década de 1990: o futuro dos jogos táticos

Em 1990, enquanto circulava, nos PCs, The Secret of Monkey Island, o icônico adventure point-and-click da LucasArts, a Nintendo teve um de seus anos mais importantes para sua consolidação no mercado dos consoles, pois era o ano do lançamento de seu novo equipamento doméstico, Super Nintendo Entertainment System (SNES), e, junto dele, do clássico Super Mario World.

Em paralelo, em um ano em que a Nintendo precisava continuar a dar grande atenção ao seu recente Game Boy, lançou, entre outras coisas, o clássico Dr. Mario, fortemente inspirado pelo sucesso de Tetris em seu portátil. Mas seu console da geração anterior (terceira), o NES (Famicom no Japão), que ainda era um grande sucesso comercial lá e no Ocidente, também não podia ser abandonado e, de fato, ainda teria uns bons anos pela frente, até ser descontinuado. Provavelmente o mais importante lançamento daquele ano para o Famicom foi Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light, resultado de outra parceria entre a Intelligent Systems e a Nintendo R&D1, título que só chegaria ao Ocidente 30 anos depois, para Nintendo Switch.

Foto de Yuka Tsujiyoko
Produzido e programado por algumas das mesmas mentes por trás de Famicom Wars, mas agora sob a direção de Keisuke Terasaki, o novo jogo da Intelligent Systems popularizou a mistura entre mecânicas de RPG e de Estratégia e estabeleceu algumas das principais convenções para a definição do subgênero híbrido TRPG (tactical role-playing game). O jogo ainda trazia uma marcante trilha sonora de Hirokazu Tanaka e Yuka Tsujiyoko; essa última, Yuka, passando a ser compositora, diretora e/ou supervisora da trilha sonora da série Fire Emblem em quase todos seus principais títulos, além dos dois primeiros Paper Mario.
Fala de Marth no início do primeiro Fire Emblem
O conceito tático híbrido entre estratégia e RPG (com influência de Dragon Quest) foi concebido por Shouzou Kaga, que trabalharia em todos os títulos da franquia até Fire Emblem: Thracia 776, no final da vida do SNES. Além desse conceito, havia, em Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light, um estilo visual baseado em mangá que seria replicado não só em seus sucessores, mas também nos próximos títulos da série Wars.

Nesse primeiro Fire Emblem, o jogador controla Marth e seu crescente exército, cruzando o continente de Archanea para recuperar o trono de que é herdeiro e derrotar Shadow Dragon Medeus e o bruxo Gharnef, que o ressuscitou para dominar o mundo. Do ponto de vista do gameplay, assim como em Famicom Wars, o jogador, em Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light, gerencia, por turnos, unidades em cenários de tabuleiro, mudando a tela do jogo, em ocasiões de batalha (como no GIF abaixo), para uma arena escura com combate automático em tempo real. Contudo, diferente de Famicom Wars, as batalhas sempre contam com um número bem limitado de unidades, para ambos os lados do confronto.
Cena de combate no início do primeiro Fire Emblem
Além disso, e mais importante, cada personagem jogável (vinte e cinco personagens) possui uma entre vinte e uma classes únicas, cada qual com uma função distinta em batalha, como utilizar montaria que amplia a movimentação no cenário ou magias ou armas (com vida útil limitada) de curto ou longo alcance.

Marth, protagonista do primeiro Fire Emblem
O jogo também permite compra e gerenciamento de equipamentos, entre outras coisas, através de negociantes acessados durante as missões, além do aumento de nível de experiência, de modo a subir automaticamente os atributos dos personagens em cada nível e, eventualmente, promoção de classe. Por fim, as batalhas acabam quando o jogador, como no Xadrez, derrota a(s) unidade(s) de maior importância, como comandantes ou chefes. Terminada uma batalha, os membros do seu exército que tiverem morrido serão permanentemente removidos das missões subsequentes e do resto da história.

O jogo de estreia da série Fire Emblem, além de inovador em vários aspectos, levava em conta um número impressionante de variáveis no cenário para a jogabilidade tática, o que excedia a capacidade da memória principal disponível no NES. Em entrevista ao Iwata Asks, o programador Toru Nahiriho afirmou que rodar o jogo só foi possível por descobrirem uma maneira de acessar uma porção da memória dedicada ao save do jogo.

Pela mesma entrevista no Iwata Asks, sabe-se que Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light não vendeu muito bem no período de lançamento, mas, a médio prazo, tornou-se bastante popular no Japão. Ademais, o título da Intelligent Systems tornou-se, a longo prazo, profundamente influente, sendo considerado uma importante fonte de inspiração para as principais séries de TRPG, como, segundo o Gamasutra, Tactics Ogre e Final Fantasy Tactics, da Square Enix, e Disgaea, da Nippon Ichi Software. Sua combinação de batalhas com desenvolvimento narrativo ainda inspirou o gameplay da série Sakura Wars, da Sega. Por fim, do ponto de vista de marketing, também foi uma produção pioneira na divulgação multimídia, por meio de seu comercial com atores reais e prévias em revistas, algo que depois seria utilizado em séries como The Legend of Zelda.

O primeiro Fire Emblem garantiu várias sequências da série até o final da década, com uma jogabilidade bastante consistente, com exceção do segundo título da franquia, Fire Emblem Gaiden (Famicom), de 1992 , comparado pela Pocket Gamer ao que foi Zelda II: The Adventure of Link (NES), de 1987, para a série The Legend of Zelda. Dos demais títulos, até o fim da década, o que teve menor índice de vendas foi Fire Emblem: Thracia 776, o qual apresentou, pela primeira vez, um objetivo diferenciado (de missão de resgate) e também é um forte candidato para um dos títulos mais desafiadores da série, principalmente os capítulos que usam mecânica de névoa (fog of war):
Fog of war no cenário de Fire Emblem: Thracia 776
Mas o destaque da década ficou para Fire Emblem: Mystery of the Emblem (Super Famicom), de 1994, para Super Famicom. Tratava-se de um remake do primeiro Fire Emblem acrescido de uma sequência da história.

As melhorias gráficas (compare a GIF abaixo com a anterior do primeiro Fire Emblem), arranjos orquestrais, etc., proporcionadas pelo hardware do Super Famicom, aliadas ao aprimoramento das mecânicas e do desdobramento da história, fizeram desse jogo o mais bem sucedido Fire Emblem, tanto comercial quanto criticamente, durante muitos anos no Japão, chegando a figurar entre os cem jogos favoritos de todos os tempos dos leitores da famosa revista Famitsu.
Cena de combate em Fire Emblem: Mystery of the Emblem (com tradução não oficial em inglês)
Outros títulos de destaque, desenvolvidos entre 1990–1999, incluem a continuação da série Wars no SNES japonês, Super Famicom Wars, de 1998, e, antes disso, a entrada da série Wars nos portáteis, com Game Boy Wars, de 1991.

Super Famicom Wars, em particular, apresentou muitas novidades para a série. Entre elas, novos conceitos de mapas, nações novas (Green Earth e Yellow Comet) e, principalmente, mecânicas relacionadas aos COs (comandantes dos exércitos) — os quais tinham atributos únicos e apareciam em destaque durante as cenas de combate —, além da possibilidade das unidades do jogador ficarem mais poderosas conforme destruíam unidades inimigas.
Imagens de Super Famicom Wars
E, além dos desdobramentos das séries Wars e Fire Emblem, também a versão para SNES de SimCity, de 1991, clássico do gênero simulação que, nessa nova versão, incluía muitas adições interessantes, como escolas e hospitais, a possibilidade de empréstimo bancário e construções especiais (cassinos, grandes parques, centro de exposições etc.), algumas das quais seriam incorporadas, mais tarde, em SimCity 2000.
SimCity para SNES mostrando Bowser invadindo a cidade do jogador no lugar de Godzilla
Outro desenvolvimento de destaque da Intelligent Systems, para SNES e Game Boy, e que também passou a caracterizar uma das especialidades dessa empresa, o gênero puzzle, foi Panel de Pon (Super Famicom), de 1995, conhecido como Tetris Attack, de 1996, no ocidente, que viria a se tornar muito influente, além de pedra fundamental da série Puzzle League. O gameplay de Panel de Pon resume-se a organizar e fazer combos com blocos coloridos (na horizontal ou vertical), à medida em que eles descem.

Imagem de Tetris Attack (Panel de Pon) no SNES
Se os blocos tocarem o topo da tela, a partida terminará. Em paralelo, colaborações em projetos maiores da Nintendo R&D1, como Super Metroid (SNES), de 1994, continuaram ocorrendo durante essa década até seu término, que coincide com o ano em que o SNES foi descontinuado, em 1999; ainda que, no Japão, o Super Famicom continuasse vivo até setembro de 2003.


Ludografia de trabalhos* da empresa na década de 1990

* Vários dos quais feitos em parceria, mas, em alguns casos, difícil precisar.

1990
  • Fire Emblem: Shadow Dragon and the Blade of Light (Famicom)
1991
  • SimCity (SNES)
  • Game Boy Wars (Game Boy)
1992
  • Super Scope 6 (SNES)
  • Fire Emblem Gaiden (Famicom)
  • Mario Paint (SNES)
  • Kaeru no Tame ni Kane wa Naru (Game Boy)
  • Battle Clash (SNES)
1993
  • Metal Combat: Falcon's Revenge (SNES)
1994
  • Fire Emblem: Mystery of the Emblem (Super Famicom)
  • Super Metroid (SNES)
1995
  • Galactic Pinball (Virtual Boy)
  • Panel de Pon (Super Famicom)
1996
  • Fire Emblem: Genealogy of the Holy War (Super Famicom)
  • Tetris Attack (SNES)
1997
  • BS Fire Emblem: Akaneia War Chronicles Section* (Super Famicom)
* Embora não conste na lista oficial da empresa, trata-se de quatro episódios avulsos disponibilizados algumas vezes entre 1997 e 1999 via download pelo periférico Satellaview.

1998
  • Super Famicom Wars (Super Famicom)
1999
  • Fire Emblem: Thracia 776 (Super Famicom)

Um breve interlúdio

Na próxima semana, abordarei as aventuras da Intelligent Systems nos anos 2000. Em relação à empresa, considero essa década uma era de fogo e de cinzas, e você descobrirá o porquê.

Por enquanto... o que está achando de nossa jornada? O que chamou sua atenção sobre a Intelligent Systems? O que você espera para a continuação dessa matéria na próxima terça-feira? Deixe seus comentários e impressões, levarei eles em conta para suas sequências nas próximas semanas. Nos vemos no próximo turno!

Sequências:
Revisão: José Carlos Alves

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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