Analógico

Chrono Trigger/Cross e Ontologia Temporal (Parte 2): Identidade e existência no tempo

Uma das coisas mais fascinantes na série Chrono são suas viagens no tempo, e hoje vamos continuar a elucidar alguns problemas dessa mecânica.




Dando continuidade à duologia de artigos sobre ontologia temporal na série Chrono, hoje vamos conversar sobre dois conceitos fundamentais em ontologia: existência e identidade. Mais especificamente vamos debater esses conceitos considerando a estrutura do tempo. Quais estruturas do tempo? As estruturas temporais de Chrono trigger (linear) e de Chrono Cross (ramificada multitemporal). Esses títulos são muito oportunos para debater esses conceitos, porque colocam questões interessantes sobre identidade e existência através de distintas execuções da premissa de viagem no tempo.


Sendo, portanto, uma continuação da Parte 1, é recomendável que você a tenha lido, contudo, como são tópicos diferentes da área de Ontologia, é possível acompanhar isoladamente este artigo. Para tanto, vou recapitular o que vimos de teoria aplicada a Chrono Trigger/Cross, e então, nos próximos tópicos, abordarei a questão da existência e identidade na temporalidade de Trigger e, na sequência, na temporalidade de Cross.

Na Parte 1, foi dito que a Ontologia é uma subárea da Filosofia que estuda a existência enquanto tal e, de forma mais específica, problemas relacionados ao que algo é, como definir sua existência e as consequências disso. Por exemplo, na ontologia da ficção, se estuda, entre outras coisas, o que é uma obra ficcional e em que sentido podemos dizer que um personagem ficcional existe, o que constitui sua existência? Perguntas semelhantes surgem, por exemplo, se perguntarmos “o que é um número?” (enquanto entidade abstrata), e assim por diante. No nosso caso, estamos interessados em Ontologia do Tempo, que aborda questões como “o que é o tempo?” e também problemas mais específicos dentro de uma estrutura temporal.


Pois bem, vimos que a obra Chrono Trigger pressupõe uma ontologia de tempo linear, ou seja, pressupõe que o tempo é como uma linha reta com passado-presente-futuro. Isso significa que, em uma viagem no tempo, se Chrono e seus amigos conseguem derrotar Lavos no passado, o futuro  em que ele não é derrotado e destrói grande parte da vida no planeta simplesmente deixa de existir.

Por outro lado, caso fosse uma ontologia de tempo ramificado, não seria assim, passariam a existir dois futuros possíveis, uma ramificação a partir do ponto da viagem no tempo em que uma daria em um futuro em que Lavos é derrotado e outra daria em um futuro em que ele não é derrotado. E é nessa lógica que trabalha Chrono Cross.

Nos eventos de Cross, por exemplo, há uma ramificação: em uma linha do tempo, Serge morreu afogado ainda criança, e outra em que Serge não morreu e é controlado pelo jogador 10 anos no futuro desse evento que o teria matado. Note que, nessa perspectiva, há um ponto em comum entre esses ramos, antes de Serge ir ao mar (onde se afogou e morreu ou não) todo o passado é igual entre essas duas linhas do tempo, mas a partir desse ponto, não mais, e as mudanças temporais vão se acumulando, podendo, via teoria do caos, gerar futuros muito diferente.

Essa questão de haver um ponto em comum para ramificação é algo bem importante, porque uma coisa é uma estrutura de tempo ramificada em árvore cujos ramos todos possuem um ponto em comum, portanto, em algum nível, um passado em comum, e outra coisa é uma estrutura ramificada em teia (ou “multitemporal”), onde há linhas do tempo totalmente paralelas entre si, sem nada em comum, senão por analogia. Para que a série Chrono seja unificada, é preciso supor uma estrutura desse segundo tipo, ramificada em teia.

Muito bem. A partir daqui, chamaremos de “Trigger-tempo” a linha do tempo linear de Chrono Trigger, “Cross-tempo” o conjunto das linhas ramificadas do tempo de Chrono Cross e “multitempo” a estrutura temporal em teia que abarca Trigger, Cross, a VN Radical Dreamers e quaisquer outras linhas do tempo paralelas (algumas ramificadas; outras, não), inclusive a linha do nosso tempo real (que é sugerida nos créditos de Chrono Cross).

Existência e identidade no Trigger-tempo

Existência e identidade são dois conceitos muito relacionados, não há como falar de uma coisa sem falar da outra, pois demarcar o que é um ser também significa se perguntar sobre o que o distingue dos demais ou do que não existe. Mas ambos os conceitos podem ser abordados de uma maneira estática (fora do tempo) ou dentro do tempo. Por exemplo: alguém pode perguntar: “Quem é Robo?”, e uma resposta pode ser: “é um dos robôs criados para ser assistente de humanos cujo número de série é R-66Y”. Note que essa resposta o que é o Robo (um robô) e a sua função (assistente de humanos) identifica qual robô precisamente ele é dentro desse conjunto (R-66Y).

A resposta acima concede uma identidade ao carismático robô que colocamos em nosso grupo de Chrono Trigger. Mas ela é uma identidade bastante fraca, pois o que há mais nesse robô que outros não tem? Por essa resposta, muito pouco, ele é só mais um robô de uma série de robôs que calhou de ficar com a numeração R-66Y. Contudo, qualquer jogador de Trigger sabe que ele é muito mais do que só um robô, por tudo aquilo de único de construiu na história com esse personagem no decorrer do tempo. E é aí que entra a “identidade no tempo”.

De um ponto de vista estático, Robo é só mais um robô entre muitos, nada mais, mas do ponto de vista temporal, na medida em que ele compartilha elos com outros personagens e ele próprio possui memória, podemos dizer que ele possui uma espécie de “jornada”. Essa jornada de vida define Robo como algo único e distinto dos demais robôs de sua série. Assim, podemos dizer que Robo é o único de sua série que foi encontrado por Crono e seus amigos em Proto Dome em 2300 A.D., entrou para o grupo e passou por todas as aventuras do jogo; a sua história o define como único para ele, para Crono e seus amigos e para a história do mundo ficcional em que se insere.

Note que, nessa perspectiva, podemos dizer que robô é definido pelo que ele é ao longo tempo em dois sentidos: (1) por suas características duradouras (que perduram no tempo), como o fato de ser um robô com as características projetadas de um da sua série; e (2) por sua jornada no tempo, ou seja, aquelas coisas que mudaram nele ao longo do tempo, mas que estão conectadas pela sua história, que é única.


Alguém poderia colocar a seguinte questão: mas, então, considerando que Robo mudou muito ao longo da sua jornada, ele ao final do jogo é o mesmo Robo que foi encontrado no início do jogo? Do ponto de vista de (1), sim, pois conserva a essência de ser um robô com número de série R-66Y. Do ponto de vista de (2), depende: ele está em momentos diferentes de sua jornada, então ele está significativamente diferente, mas considerando que sua essência é a mesma e existe uma história que conecta ambos (Robo do início e Robo do final do jogo), então se trata do mesmo personagem.

Esse problema poderia ser colocado para um humano qualquer, ele enquanto um bebê e ele no final da vida, um idoso, é a mesma pessoa? Ele mudou muito, mas, sim, por determinadas coisas que permanecem desde a origem e pela história que une o que ele foi e o que veio a ser. A resposta parece simples. Não é tanto assim, há exceções que levam longos debates em Filosofia. Mas como a ideia não é se aprofundar, vamos deixar como está, o interessante é mostrar como tudo muda de figura quando consideramos um tempo ramificado como o de Chrono Cross.

Existência e identidade no Cross-tempo

Em Chrono Cross, as consequências de viajar no tempo são muito mais complicadas. Um personagem pode se encontrar com uma versão alternativa dele, de tal modo que podemos nos perguntar: “são eles o mesmo personagem?”. Considerando os dois critérios do tópico anterior, podemos dizer tanto que sim, pelo critério (1), quanto que não, pelo critério (2).

Considere o momento de bifurcação do Cross-tempo em 1010 A.D. Nesse momento, surgiu uma timeline em que Serge está morto e outra em que Serge continua vivo. Mesmo parecendo algo pequeno, ao longo do tempo, isso traz consequências ao mundo como um todo, por efeito dominó. Considere o caso de Norris, um personagem que entra para o grupo de Serge e seus amigos e, viajando para essa linha do tempo que Serge está morto, encontra-se “consigo mesmo”, ou seja, o Norris daquela outra linha do tempo.


Pelo critério (1), ambos os personagens de nome Norris possuem coisas em comum de origem, como, por exemplo, terem o mesmo nome. Por outro lado, pelo critério (2), ambos possuem uma história diferente no tempo, tiveram jornadas distintas, cada um em uma linha do tempo diferente. Nesses casos, em que há contrapartes de uma entidade em mundos paralelos, filósofos como David Lewis argumentam que não se pode dizer que são a mesma entidade, dado que não compartilham relação de causa e efeito.

Lewis está chamando a atenção para o seguinte: suponha que Serge e seus amigos (incluso Norris), nessa linha do tempo paralela, matem o Norris daquele tempo. Qual consequência teria para o Norris que está no grupo do jogador? Nenhuma. Isso não mudaria nada no Norris jogável e nem em seu mundo, porque estão em linhas do tempo paralelas, com futuros independentes.



Note que esse raciocínio não funciona no Trigger-tempo. Se Crono e seus amigos (incluso Robo) viajassem para o futuro, e se lá encontrassem o Robo antes de entrar para o grupo (coisa que não é possível in-game), esse Robo, se fosse destruído, faria o Robo do grupo desaparecer também, pois se trata de um tempo linear, e não faz sentido que o Robo esteja no seu grupo se, no passado, ele foi destruído antes que pudesse entrar no grupo.

Veja que isso gera um paradoxo temporal (semelhante ao que mencionamos na Parte 1). Esse paradoxo surge justamente porque eles são uma mesma entidade, na mesma linha do tempo, e compartilham relações de causa e efeito. Assim, podemos dizer, então, que os dois Norris de Cross (bem como as demais versões paralelas de personagens do jogo) não são exatamente o mesmo personagem, ao menos não no mesmo sentido de “mesmo personagem” que usamos ao falar dos personagens de Trigger.


Existência e identidade no Multitempo

Para terminar, precisamos falar sobre existência e identidade no multitempo. Nos créditos de um dos finais de Chrono Cross, vemos filmagens de uma garota real que se parece com Kid que está a procura de alguém no nosso mundo real. De acordo com o diretor e escritor, Masato Kato, esse alguém seria o próprio jogador. Por essa alusão, e também por haver personagens semelhantes e de mesmo nome nos jogos da série Chrono, em que medida podemos dizer que são o mesmo personagem?

Conhecemos, por exemplo, três versões de Kid, uma em Cross, uma na VN Radical Dreamers e outra supostamente na timeline da vida real (pelos créditos). É provável, pela lore de Chrono, que haja inúmeras versões da Kid. O que faz todos esses personagens serem o mesmo? Pelo critério (2), não são o mesmo, todas possuem jornadas totalmente distintas de vida em tempos independentes.

Pelo critério (1), também algumas versões de Kid também não são o mesmo personagem, já que podem mudar inclusive em essência e questões de origem. A linha do tempo de Radical Dreamers, por exemplo, não é uma ramificação do Cross-tempo, é um tempo paralelo a esse, e a Kid do mundo real, idem. Uma forma, então, de caracterizar uma identidade em sentido fraco para esses casos é o que filósofos como Tomasz Placek chamam de “existência multimundana”.


A existência multimundana é aquela estabelecida por entidades de diferentes mundos e/ou tempos, mas que possuem em comum as suas potencialidades. Por exemplo: você pode fazer muitas coisas com um bloco de madeira, como transformar em uma mesa ou em uma cadeira, mas você não pode transformá-lo em um tanque de ferro. As potencialidades da madeira são restritas, em um mundo/tempo possível, ela pode ter virado uma mesa, em outro, uma cadeira, mas há limitações do que ela pode ser.

Nesse sentido, nós podemos dizer que o conceito de existência pode ser compreendido de uma forma multimundana ou multitemporal, mesmo que os objetos tenham identidades distintas. As consequências disso são bem interessantes, e uma delas é que o conceito de existência transcende o de identidade: alguém pode morrer, perder sua identificação no mundo, mas sua existência, em certo sentido, continuar. Por exemplo: Serge morreu em um dos ramos do Cross-tempo, mas não deixou de existir, porque há outras versões de Serge, como aquela jogável em Chrono Cross e aquela outra jogável em Radical Dreamers.



Então, como estão os neurônios? Sei que alguns conceitos desses são de explodir cabeças, não é? A série Chrono é muito interessante em sua construção de mundo e dá muito pano pra manga. Espero que tenham gostado deste artigo e também do artigo da Parte 1, e sintam-se à vontade para comentar sobre dúvidas, objeções, interpretações da lore desses jogos etc.

Caso queiram se aprofundar em alguns desses temas, além dos hypelinks de Lewis e Placek, também recomendo um verbete a respeito de identidade na enciclopédia de Stanford e os já mencionados três livros da Parte 1 muito bons para uma visão geral desses temas em Filosofia e Lógica: The Logic of Time, de van Benthem; Metafísica (coleção “Conceitos-chave em Filosofia”), de Brian Garrett; e As Estruturas e O Tempo, de Cesare Segre. Para mais informações sobre a cronologia da série Chrono, recomendo também o portal Chrono Compendium.
Revisão: Cristiane Amarante

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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