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Análise: Chrono Cross: The Radical Dreamers Edition (Switch) é o despertar de um longo sonho

Embora com problema de performance, Chrono Cross continua ao mesmo tempo brilhante e maluco e Radical Dreamers finalmente chega ao Ocidente.




Desenvolvida e publicada pela Square Enix, Chrono Cross: The Radical Dreamers Edition é uma coletânea que traz uma remasterização de PS1 de um dos mais clássicos e aclamados JRPGs da década de 1990, Chrono Cross, somado a um port de uma obscura visual novel até então exclusivamente lançada no Japão, via Satellaview (um periférico de modem via satélite do Super Famicom), Radical Dreamers – Le Trésor Interdit –. Ambos os títulos são sequências indiretas de Chrono Trigger e, embora possam ser apreciados em separado, é altamente recomendável jogar Trigger antes de partir para os jogos dessa coletânea.


Seguindo a tendência de remasterizações da empresa, a proposta da Square Enix com essa coletânea é, antes de tudo, dar acesso ao restante da aclamada série Chrono em múltiplas plataformas atuais. Além da disponibilidade dos títulos, a equipe, supervisionada pelos desenvolvedores do original (como Masato Kato e Yasunori Mitsuda), trouxe melhorias em termos de apresentação  audiovisual, performance e mecânicas de qualidade de vida que visam tornar escolhas e limitações de design da quinta geração de consoles mais digeríveis a um público não habituado a JRPGs desse período.

Vale observar que o projeto foi de baixo orçamento, o que se reflete no seu preço de lançamento (20 dólares), não se devendo esperar dublagem ou quaisquer outros recursos onerosos. Contudo, mesmo dentro do básico há problemas que precisam ser salientados ao lado do conteúdo dos jogos em si.



Uma das tramas mais complexas já escritas em JRPG

 Visto da superfície, a trama de Chrono Cross é mais uma história típica  sobre um garoto adolescente aparentemente comum que, um dia, sai de casa e só volta  após uma jornada épica que o leva a matar deuses e salvar o universo. Há várias abordagens para essa escalada japonesa megalomaníaca, típicas em mangás da demografia shounen, com obras que abordam do despertar de dragões ancestrais a viagens interdimensionais.

Então, qual é a abordagem de Chrono Cross dentro dessa demografia? Todas elas. Todas juntas, misturadas e com requintes de boas questões filosóficas sobre existência e identidade.

A história se passa em El Nino, um arquipélago tropical  isolado do resto do mundo e habitado por nativos antigos, colonizadores do continente e feras antropomorfas chamadas demi-humanos. O jogador controla um jovem de 17 anos da Vila Arni chamado Serge, que acidentalmente viaja para o passado, mas em uma dimensão alternativa onde morrera afogado 10 anos atrás.

Imagem capturada com novos modelos para os personagens.

Imagem capturada em modo Clássico.




Perseguido por Lynx, um demi-humano com feições de uma pantera, Serge é salvo por Kid, que o convence a acompanhá-la em uma missão para roubar a lendária Frozen Flame na Mansão Viper. No caminho, acaba por descobrir que duas dimensões alternativas foram criadas em função de ter se salvado misteriosamente do afogamento há 10 anos. Agora, Serge precisa entender o que exatamente aconteceu no passado de sua dimensão, como funcionam esses dois “mundos” e quais as intenções de Lynx.

Durante mais de 40 horas de história (fora um riquíssimo New Game+), Serge encontrará dezenas de personagens secundários (alguns opcionais; outros, obrigatórios) que o acompanharão em uma aventura cheia de reviravoltas e com boas reflexões sobre a existência e a identidade pessoal em um contexto multitemporal. A forma da narrativa é altamente engenhosa e não-linear, mesmo para os padrões atuais, com 11 finais e muitas variações de acontecimentos, sobretudo de diálogos incidentais que dependem de side quests, e escolhas durante a jornada. Os diálogos, inclusive, são muito bem escritos em conteúdo e forma, apresentando sotaques e mesmo termos de outras línguas, como o francês.





Como sequência de Chrono Trigger, que misturava alta fantasia, elementos de ficção científica, não-linearidade e viagem no tempo, era de se esperar que Chrono Cross, como sucessor, fosse narrativamente ainda mais complexo, caso pretendesse aprofundar esses conceitos e, ao mesmo tempo, dar um tom mais sério e reflexivo para sua trama. Contudo, mesmo que seja algo esperado em termos de qualidade (até certo ponto), não deixa de ser verdade que o texto de Chrono Cross é um sonho excessivamente confuso e convoluto. Isso é problemático em principalmente três aspectos de seu design narrativo: desenvolvimento de personagens secundários; storytelling; e escrita de cenário.

Com um elenco de 45 personagens, o nível de entropia em uma narrativa não-linear é incrivelmente alto para que se possa prever as diferentes interações deles no curso da trama. Por consequência, naturalmente há muitos furos e arbitrariedades em relação aos personagens secundários jogáveis, os quais, salvo raras exceções (como Kid e Harle), têm importância nula ou muito pontual para a história principal. Enquanto isso, Serge, como protagonista mudo, também não demonstra tanta personalidade, de modo que, no fim do dia, há poucos personagens memoráveis, sobretudo levando em conta a segunda metade da história.




A forma como a história é contada (storytelling) é tão importante quanto o seu enredo (plot), e nisso o trabalho de Masato Kato, diretor e co-escritor de Chrono Cross e também coautor de Chrono Trigger, tomou um rumo de contrastes interessante, mas arriscado. A primeira metade da narrativa é movida pelo desenvolvimento dos personagens, particularmente motivada pelas intrigantes visões do passado e do futuro de Serge.

Na segunda metade, a narrativa foca mais no enredo, movendo a história por meio de fatores contextuais relacionados à concepção e ao destino do universo de Chrono Cross. Essa ruptura tem uma boa explicação dentro da trama, mas também alimenta uma dupla insatisfação na segunda metade do jogo por praticamente abandonar a relevância de seus personagens e por apresentar uma exposição textual convoluta, densa e confusa da mitologia e da ontologia daquele universo, embora seu amálgama de loucuras chegue a ser, em muitos casos, divertido.


Além da questão dos personagens secundários e do storytelling, a escrita de cenário de Kato peca pelo excesso nos diversos elementos contextuais envolvidos que, apesar de conterem boas ideias, são desenvolvidas sem o devido espaço, o que prejudica o foco e a verossimilhança/“credibilidade” do worldbuilding. Todavia, não podemos dizer que o enredo é incoerente ou desinteressante.

Quanto mais se pensa sobre as escolhas do início até os créditos do jogo, mais é claro quão bem-planejados são os eventos nas diferentes linhas do tempo (refletindo junto com o Trigger). Também fica mais nítida a profundidade dos problemas colocados a respeito de questões como a definição do “eu” em um contexto de muitos “eus” (em diferentes dimensões) e o problema do livre-arbítrio vs. determinismo para se pensar a temporalidade.

No caso de Radical Dreamers, o subtítulo Le Trésor Interdit (O Tesouro Proibido, em francês) alude à mesma premissa do começo de Chrono Cross, com a tentativa de roubar a Frozen Flame na Mansão Viper, mas a trama é bem mais contida e breve, desenrolando-se de maneira diferente em relação ao JRPG. A visual novel tem um tom maior de suspense (alimentado também pelo estilo audiovisual) durante a exploração e não peca por excesso nem de contexto nem de personagens, os principais sendo Lynx (antagonista) e Serge, Kid e Magil (protagonistas). Por outro lado, e apesar de também ter design não-linear, é uma narrativa simples e filosoficamente pouco instigante.



Um gameplay altamente criativo e flexível

Como quase todo JRPG, a gameplay de Chrono Cross, apesar de ter bastante personalidade, pode ser resumida em exploração, árvore de diálogos e batalhas por turno. Seguindo a tradição de Ultima e Dragon Quest, a exploração alterna momentos de áreas e dungeons pequenas com objetos escondidos e momentos de mundo aberto com veículo. Apenas no primeiro caso há inimigos e chefes para enfrentar, os quais ocorrem por encontro visual (e não encontro aleatório), como em Trigger, porém com transição de batalha (ou seja, não ocorrem no mesmo cenário). As árvores de diálogo seguem padrões de Trigger e da série SaGa e possuem significativas opções de diálogo para os padrões da época, podendo não só alterar falas, mas também trazer efeitos a curto prazo na trama, embora sempre culmine na mesma reta final.

O level design costuma ser fácil nos inimigos normais e mais desafiador em chefes. As batalhas por turno são regidas principalmente por dois sistemas únicos: Element System e Stamina Recovery System. Inspirado no sistema de Materia de Final Fantasy VII, o primeiro é um sistema de elementos, cada qual com uma cor do arco-íris, atribuídos a itens (como poções e antídotos) e habilidades (bola de fogo etc., que aqui são consumíveis como itens). Cada personagem tem maior ou menor afinidade a algum elemento/cor, de modo que eles podem performar melhor itens e/ou magias daquele tipo. Ademais, tal como pedra-papel-tesoura ou o sistema triangular de Fire Emblem, há ainda relações entre esses eles elementos:
  • Vermelho (fogo/magma) se opõe ao Azul (água/gelo);
  • Verde (vento/flora) opõe-se ao Amarelo (terra/relâmpago);
  • Branco (luz/cosmos) opõe-se ao Preto (escuridão/gravidade).

Os itens e habilidades são “equipáveis” em uma escala de oito níveis. Quanto mais poderoso é o item ou habilidade, mais alto na escala ele terá de ser equipado, e quanto maior o nível da escala, menos slots tem. Uma configuração possível para um personagem, por exemplo, seria 4 slots no nv. 1, 3 no nv. 2, 2 no nv. 3 e 1 no nv. 4. Nesse caso, esse personagem poderá, em batalha, usar 4 tipos de habilidade ou item de nv. 1, 3 de nv. 2 e assim por diante. Cada item ou habilidade em um slot só pode ser usado uma vez durante a batalha. Nesse momento, além das relações acima de oposição entre cores, o uso de um determinado elemento pode ter vantagem ou desvantagem dependendo das cores indicadas por um subsistema dinâmico chamado Field Effect (representado no canto superior esquerdo da tela), o qual mostrará a cor que ganhará vantagem no próximo turno.

Em paralelo, há o Stamina Recovery System. Diferente do Stamina System, criado em Secret of Mana, Chrono Cross faz uma leitura muito criativa do sistema para combate por turnos, basicamente possibilitando três tipos diferentes de ataque físico que podem ser executados em combos em um mesmo turno, cada qual com variação de custo de stamina, intensidade de dano e chance de acerto. A stamina é recuperada conforme o personagem defende golpes ou outros personagens realizam suas ações.




Como em Final Fantasy VIII, que não é necessário se focar em upar level (embora o sistema exista), Chrono Cross também não precisa, na verdade, sequer possui um sistema de experiência, de modo que os personagens não sobem de nível, mas aumentam seus atributos e pontos de vida após os combates. Essa escolha foi muito acertada, pois evita grinding e favorece seu level design de exploração não-linear. Seja o Element System, seja o Stamina Recovery System, ambos se harmonizam também com o gerenciamento de grupo, cada personagem evoluindo junto, com habilidades únicas para além dos elementos intercambiáveis em seus slots e com ataques em dupla ou trio (tal como o Tech System de Chrono Trigger).

Quanto a Radical Dreamers, sua dinâmica de gameplay também envolve batalhas, o que se assemelha a text-adventures como Zork, mas Le Trésor Interdit simplifica o sistema com meras opções de diálogo como "Fight", "Magic", "Run" e comandos como "Run my knife into the goblin's chest!" ou "Quickly slash at its hand!". Embora não tenha Stamina, a demora do jogador para escolher uma opção também é levada em conta tanto em combate como durante os diálogos.





Um audiovisual marcado por paradoxos e traços impressionistas e tribais

A direção de arte de Yasuyuki Honne conta com personagens em 3D (remodelados e com belos perfis redesenhados pelo artista original, Nobuteru Yūki) e câmera fixa em cenários pré-renderizados; no remaster, com um upscale razoável. Ocasionalmente, esse estilo de design é bem aproveitado em jogos de câmera, em transições para belas CGIs (para a época), em ilusões óticas – à moda dos desenhos de Escher (segunda imagem abaixo) – e em pinturas com reminiscências de movimentos artísticos como o impressionismo e o fauvismo.

A ambientação é majoritariamente marcada por elementos tropicais e tribais que contrastam com arquiteturas medievais e frequentemente contribuem para discussões a respeito de problemas relacionados à ecologia e à colonização, havendo posteriormente inserção de elementos futuristas.

Recorte de "Waterfall" (1961), de Maurits Escher.

No remaster, tudo isso pode ser apreciado em três configurações de tela; 4:3, Zoomed e Full (embora não fique totalmente em tela cheia). O menu também oferece a possibilidade de alternar entre o estilo de modelos, perfis e outras coisas refeitas e o estilo totalmente clássico com resolução aumentada. Outra opção também disponível no menu é a de ouvir algumas peças de Chrono Cross rearranjadas.

Quanto à música e direção de som, para melhor aproveitamento reflexivo, em algumas ocasiões é retirada a música, aproveitando o silêncio e os efeitos sonoros, ou então a música de batalha é substituída por peças melancólicas feitas para uma cena específica. De um ponto de vista estritamente musical, o remaster de Chrono Cross traz uma qualidade de som refinada das peças originais de Yasunori Mitsuda, as quais, diga-se de passagem, são, de modo geral, primorosas.







Contudo, a música de batalha pode soar muito repetitiva para os padrões de hoje em dia. Essa repetitividade incômoda é agravada pelo fato de as batalhas sofrerem constantemente de drásticas quedas de quadro (com oscilações que descem até 15 fps).

Em consonância com a ambientação, e com ênfase em peças acústicas e percussão, a harmonia, os ritmos e timbres trazem forte influência do mediterrâneo, como do Fado português, além de influência de músicas celtas e africanas, e traços do romantismo, especialmente em momentos mais tristes e reflexivos.

Especificamente sobre as melodias nas músicas de Chrono Cross, há várias originais, embora a maioria das mais marcantes sejam reaproveitadas de Chrono Trigger e de Le Trésor Interdit; em ambos os casos, em peças nas quais Mitsuda trabalhou para esses títulos. Os novos arranjos também foram supervisionados por Mitsuda e suas influências tímbricas e ritmicas do mediterrâneo, do Fado etc., também estão presentes nessas peças, como em "Dreams of the Past, Memories of My Soul".

Um tímido retorno de um grande clássico

Embora às vezes subestimado, sobretudo por seu design narrativo confuso e convoluto, não há dúvidas de que Chrono Cross foi, em muitos aspectos, excepcional para seu tempo. Mesmo nos dias atuais, Cross ainda é profundo, engenhoso e uma referência de sinergia de gameplay e narrativa para design não-linear dentro de seu gênero.

Radical Dreamers também é uma peça cara aos fãs ocidentais que esperaram décadas por uma localização e traz uma versão alternativa interessante dos acontecimentos iniciais em Chrono Cross, agregando também para refletir sobre o gameplay e a música do JRPG.

Mesmo considerando que seja uma coletânea de baixo custo, Chrono Cross: The Radical Dreamers Edition poderia ser melhor, principalmente na performance em batalha. Contudo, não é de se negar que os demais esforços da equipe para trazer esses títulos à nova geração de consoles são louváveis, principalmente Chrono Cross, que continua uma ótima recomendação para fãs de JRPG.

Prós

  • Design narrativo não-linear engenhoso, flexível e de alto fator replay no New Game+;
  • Diálogos bem escritos (em forma e conteúdo) e problemas ecológicos e sociais bem contextualizados;
  • Abordagem de temas filosóficos interessantes e adequados às premissas de viagem no tempo e paralelismo temporal;
  • Sistemas de batalha inovadores em seu tempo e ainda diferenciados e funcionais, além de coerentes com a proposta;
  • Traz uma VN inédita e aguardada no Ocidente com design não-linear e elementos de RPG;
  • A direção de arte de alguns cenários continua brilhante e inspiradora, e as melhorias são notáveis;
  • Trilha sonora continua excelente aos padrões atuais, em ótima sintonia com a ambientação, e agora com maior qualidade de som;
  • Algumas mecânicas suplementares de qualidade de vida são bem úteis, principalmente a possibilidade de aceleração e o auto-battle.

Contras

  • Uma profusão de personagens secundários pouco marcantes, mal-aproveitados e mal-desenvolvidos;
  • Performance em batalha terrível (com oscilações drásticas em quedas de quadro);
  • Enredo extremamente convoluto, prejudicando o foco e a imersão do worldbuilding;
  • O ritmo confuso em que a história é contada (mesmo quando bem motivado) sofre alguns atropelos e é muito dependente de exposições textuais densas concentradas em poucos momentos da trama.
Chrono Cross: The Radical Dreamers Edition — PC/PS4/XBX/Switch — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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