Analógico

Shin Megami Tensei: Devil Survivor (DS/3DS) e o experimento mental do Demônio de Laplace

Descubra como esse clássico de DS faz uma releitura de uma ideia de filosofia da física proposta por Pierre-Simon Laplace.


Desenvolvido e publicado pela Atlus em 2009, sob a direção de Shinjirō Takata, Shin Megami Tensei: Devil Survivor (DS) é um RPG tático — um pouco mais inclinado para RPG do que para tático — ambientado em Tokyo, nos anos 2000, em um contexto de lockdown em uma área na qual ocorre um jogo demoníaco de sobrevivência de 7 dias que decidirá o futuro da humanidade. Com essa premissa, o enredo também se apropria do experimento mental do Demônio de Laplace na forma de um computador capaz de antecipar eventos durante um jogo de sobrevivência chamado War of Bel.


Essa não é a primeira vez que a série Shin Megami Tensei trabalha com conceitos filosóficos, na verdade, isso se trata de algo recorrente nessa franquia. Por exemplo, como já mostrei em outro artigo aqui no Nintendo Blast, Shin Megami Tensei III (Multi) é amplamente projetado em torno de ideias como “vontade de potência/poder” e Übermensch (“super-homem” ou “além-homem”), desenvolvidas em Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche. Assim como naquele ensaio aplicado de filosofia política de SMT III, hoje mostrarei como o experimento do Demônio de Laplace é mobilizado em Devil Survivor.

O Demônio de Laplace

Comecemos pela teoria. Uma crença comum de nossa experiência cotidiana é a de que nós, humanos, gozamos do que nas áreas da Filosofia e das Ciências Cognitivas chama-se “livre-arbítrio” (free will).

Para os fins deste breve ensaio, podemos entender introdutoriamente esse conceito como “a capacidade de escolher entre diferentes cursos de ação possíveis sem impedimentos.” Essa noção é importantíssima para a Teologia, Ética, Ciências Jurídicas e outras áreas, pois, na hipótese determinista forte de que não haja livre-arbítrio, torna-se problemático imputar culpa, pecado e outras atribuições de responsabilidade aos seres humanos.


Pois bem, uma das formas mais clássicas de negar o livre-arbítrio humano é por via de um experimento mental proposto pelo filósofo, matemático e físico Pierre-Simon Laplace. Em seu ensaio filosófico sobre probabilidade — Essai philosophique sur les probabilités (1814) —, o marquês de Laplace propõe que aceitemos duas premissas:
  1. Uma inteligência capaz de armazenar e calcular todas as variáveis do universo em um estado do universo, em um tempo presente t;
  2. Que tudo nesse universo funcione deterministicamente conforme as leis da física newtoniana.
Dadas essas premissas, a conclusão é de que essa inteligência (o “demônio de Laplace”, como foi apelidado) saberia exatamente como estaria o universo em um instante posterior t'.

Como notaram muitos de seu tempo — principalmente teólogos —, esse argumento era potencialmente perigoso e catastrófico, pois resultava em que as ações dos humanos estavam determinadas, não seriam realmente decorrentes de suas escolhas. A intenção e a consciência de um humano para agir de determinada forma seriam, na verdade, apenas decorrentes de limitação e ilusão na falta de ciência acerca de todas as variáveis que determinariam qual, no fim das contas, seria sua ação praticada.


Em outras palavras, tudo seria previsível no universo, tal qual um relógio perfeitamente calibrado. Se um dia pudéssemos, por exemplo, montar um computador capaz de ser o demônio de Laplace, ele poderia saber exatamente se você, caro leitor que está a ler este texto, o lerá até o final ou não, se depois de isso feito você irá jogar Devil Survivor ou não, e muito mais.

Entretanto, as coisas não são tão simples como Laplace gostaria, e nos séculos seguintes surgiram numerosos obstáculos para suas duas premissas. Enquanto estudos na Física, nos campos da termodinâmica, da teoria do caos e da mecânica quântica mostraram que o universo não era tão determinístico e/ou previsível como se acreditava no início do século XIX; e estudos em Filosofia, Matemática e Lógica mostraram a impossibilidade de existir ou de se criar a suposta inteligência laplaciana. Todavia, é ainda um tópico histórico importante e inspirador para discussões sobre determinismo causal, e SMT: Devil Survivor soube se apropriar dela para criar uma experiência única.

O computador laplaciano e a guerra entre anjos e demônios

No final dos anos 2000, a Atlus resolveu dar vida a um novo spin-off da série Shin Megami Tensei que combinaria perfeitamente com o experimento de Laplace. Esse spin-off, Devil Survivor, tinha como público alvo adolescentes e jovens adultos, um level design tático simples e uma nova abordagem de enredo das quatro principais marcas da série: ambientação no Japão contemporâneo; design narrativo flexível com base em escolhas; temática religiosa e filosófica; e sistema de combate e de fusão com demônios.

A ideia é que, no decorrer da trama, em uma região em lockdown de Tokyo, o Protagonista (com nome dado pelo jogador) e seus aliados descubram que um surto demoníaco local é resultado de uma batalha planejada entre anjos e demônios, como uma forma de julgarem o valor da humanidade. O trato entre os anjos e demônios estabelece que, caso os demônios não sejam detidos em 7 dias pelos humanos, os anjos deveriam destruir a humanidade.


Acontece que o governo japonês estava ciente desse evento há anos e promulgou a Lei PSE como uma salvaguarda, que embutiu certos dispositivos eletromagnéticos de controle remoto em todos os eletrônicos de consumo. Ao lado do lockdown, isso foi feito para que, caso o surto de demônios não pudesse ser interrompido, o governo poderia usá-los como último recurso para destruir os seres vivos dentro da quarentena (humanos e não-humanos), estando disposto a praticar um “sacrifício necessário”.

Nessa proposta, Shinjirō Takata (diretor da série Langrisser) não só soube fazer um gameplay único de TRPG para essa série, mas também articulou com maestria os conceitos filosóficos tratados no tópico anterior para dar coerência ao design de Devil Survivor. Os protagonistas têm a idade média do público alvo (17 anos), e utilizam aparelhos como celulares e o COMP (muito semelhante a um DS), dispositivo capaz de capturar, invocar e domar demônios. Na posse desses aparelhos, os humanos em lockdown trataram de leiloar demônios nessa região, estabelecendo uma economia de sobrevivência. Enquanto isso, do outro lado da tela do DS, o jogador raciocina taticamente em combate e moralmente em suas escolhas, em consonância com a problemática filosófica do jogo.


Nessa premissa, foi oportuno explorar o conceito de internet, hackeamento e computabilidade a favor do argumento de Laplace, além de um cenário controlado, onde as variáveis das ações podiam ser relativamente isoladas do resto do mundo, daí a ideia de colocá-los em uma região em lockdown. Por fim, o nome “demônio” veio como bônus para remeter à demonologia de SMT. Assim, a reimaginação do experimento do demônio de Laplace aparece em SMT: Devil Survivor principalmente em três circunstâncias:
  • sistema Laplace Mail para entregar missões para o jogador;
  • confronto de determinismo vs. livre-arbítrio durante as escolhas do jogador;
  • e releitura computacional, política e religiosa das premissas de Laplace.

No Laplace Mail reside o coração da proposta de Devil Survivor. Trata-se de um COMP e-mail no qual alguém chamado “O Observador” envia todos os dias pela manhã uma mensagem aos protagonistas sobre coisas que deverão ocorrer durante aquele dia, as quais podem ser sensivelmente alteradas, a depender das escolhas do jogador, evitando ou retardando mortes de pessoas, por exemplo. Em analogia à famosa transformada de Laplace, que simplifica e traduz equações diferenciais, o Laplace Mail traduz mensagens do submundo para uma linguagem compreensível aos humanos que possuem um COMP.

Ainda dentro desse conceito de “prever o futuro”, há o Death Clock, uma habilidade do Protagonista para ver os dias remanescentes dos humanos antes de morrerem. Com base nas informações do Laplace Mail e do Death Clock — os quais possivelmente são baseados no mesmo algoritmo —, o jogador pode evitar mortes e eventos, tornando o sistema de Laplace cada vez mais impreciso. Desse modo, as escolhas de game design levam a uma experiência de confronto abstrato entre determinismo vs. livre-arbítrio que se traduz em um confronto concreto entre demônios vs. humanos, no qual estes últimos visam conquistar sua liberdade, descobrir as intenções do governo e também mostrar seu valor aos anjos.


No meio dessas disputas, Yoh Haduki e sua equipe de escritores de Devil Survivor foram muito competentes em embutir questões pertinentes sobre ética, política e religião. É interessante notar como a visão religiosa aqui aproxima-se de narrativas mitológicas nas quais o humano aparece quase como um “brinquedo” das divindades, e a narrativa não apresenta um “caminho certo”, pelo contrário, incentiva o jogador a jogar e rejogar à sua maneira, testando suas convicções morais e levando-o a diferentes finais.

Contudo, há também problemas de acurácia. Apesar de um trabalho de design bem-feito, leitores mais atentos perceberão que há falhas na representação do Demônio de Laplace. Primeiramente, apesar do lockdown isolar uma área, ela não retira os problemas da física pós-newtoniana. Além do mais, também não isola totalmente as variáveis do resto do mundo sobre aquele local, prova disso são as ações políticas do governo, pelo que é difícil sustentar uma inteligência capaz de computar também as variáveis externas sem entrar em contradição com as intenções do governo.


Em segundo lugar, mesmo que isso seja concedido pela premissa sobrenatural do jogo, é também contestável como o Laplace Mail vai se tornando impreciso até “bugar” de vez, pois ele parece capaz de revisar seus cálculos no decorrer dos dias. E mesmo que não fosse, pela teoria de Laplace, essa máquina deveria saber de antemão as escolhas do jogador, do contrário, ela, na verdade, não consiste em um demônio de Laplace, uma vez que não contém todas as variáveis do universo, como o experimento pressupunha.

A despeito de alguns probleminhas de incoerência com o argumento determinista de Laplace, o jogo oferece uma experiência interessante e lúdica do assunto, podendo servir como material de apoio para quem se interesse pelo tema, desde que ciente de suas imprecisões e licenças poéticas. Ademais, trata-se de um título com ótima OST de rock e com um coeso e engenhoso design de TRPG, sobretudo em mecânicas de RPG e design narrativo.

Shin Megami Tensei: Devil Survivor (DS) e seu sucessor, Shin Megami Tensei: Devil Survivor 2 (DS), possuem também versões para 3DS (respectivamente, as versões Overclocked e Record Breaker). Todas essas versões são recomendáveis para fãs do gênero e, na opinião deste que vos escreve, são também ótimas entradas para a série Shin Megami Tensei.
Revisão: Thais Santos

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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