Super Mario Bros. O Filme sob as lentes da nostalgia: o embate entre o familiar e o novo

O quanto Mario precisa ser reinventado para a tela grande?

em 08/04/2023

Já abordei a teoria da adaptação de Linda Hutcheon quando analisei os mangás de The Legend of Zelda. A ideia de que a adaptação é um processo de releitura, que cria algo ao mesmo tempo familiar e novo, é proveitosa para pensar sobre o novo Super Mario Bros. O Filme, que já recebeu nossa resenha pelas mãos de Juliana Paiva Zapparoli.

Ela se coloca como uma “não tão fã” do bigodudo quanto a provável maioria dos jogadores da Nintendo, o que, possivelmente, inclui você, leitor do Nintendo Blast. Ju levanta a questão de que o filme não expande sua fonte, focando em preencher a tela com referências para agradar ao fã garantido, talvez em detrimento da busca por novos fãs. É essa dualidade entre o terreno familiar e o novo que pretendo discutir aqui.



Como o fan que sou, amei o service

Fui ao cinema com minha esposa, nossos filhos e uma amiga. O de oito anos reconheceu elementos dos jogos o tempo inteiro, enquanto o de quatro anos assistiu concentrado, riu e irrompeu em comemoração com a vitória final. Ele também conhece bem aquela turma e gosta muito de todos.

A sala não tinha muita gente, mas aquelas poucas dezenas que estavam ali celebraram o filme, aplaudiram quando o filme acabou e continuaram as palmas no ritmo da música tema enquanto os créditos animados subiam pela tela. Não pude deixar de me arrepiar quando a grandiosa música de Super Mario Galaxy (Wii/Switch) entrou no medley final.

Não consigo sequer imaginar como seria assistir sem qualquer relação afetiva com aquele mundo, mas, na verdade, eu nem daria a chance, já que essas animações não fazem meu tipo. Foram Mario, Luigi e Peach que me levaram ao cinema e a gostar do filme. Quero mais.



Do Brooklyn ou de Kyoto?

A ideia do longa vinha sendo ruminada por Shigeru Miyamoto há vários anos, até que a aproximação entre a Nintendo e a Universal para criar os parques temáticos Super Mario World trouxe a oportunidade de tocar o projeto para frente com o estúdio norte-americano Illumination, mais conhecido por ser o berço de Meu Malvado Favorito e seus Minions.

Logo, Super Mario Bros. O Filme é uma obra feita nos Estados Unidos e acaba caindo no clichê aparentemente obrigatório de colocar Nova Iorque sob ameaça, mas, de resto, carrega uma fidelidade apaixonada por tudo que representa Mario. Um filme, no entanto, é diferente de um jogo e precisa de muitas transformações. No nosso filme em questão, eu diria que a principal foi de ordem de estrutura narrativa.

O teórico de games Jesper Juul, em seu livro Half-Real: Videogames entre Regras e Mundos Ficcionais, propõe que, do ponto de vista da ficção, os jogos se dividem em cinco tipos, que vão do nível abstrato ao representativo. Os títulos de Mario, em geral, ficam no meio do caminho, sendo Jogos de Mundo Incoerente.



Calma, isso não é um xingamento ou demérito, é apenas o conceito básico de que esses mundos não precisam ter um sentido que ligue seus elementos em coerência. Por exemplo, as moedas fazem parte da série desde os primórdios de Super Mario Bros. (NES), mas nunca sabemos por que Mario precisa delas.

Em Super Mario Odyssey (Switch), essa parte recebeu um significado, pois as moedas podem ser usadas para – surpresa! – comprar roupas. Além disso, elas estendem a vida de Mario, pois ele sempre perde um número fixo quando morre e... e isso não fez muito sentido também, certo? Esse é o ponto: mundos incoerentes não precisam fazer sentido em si mesmos.

Disto vem o que é, para mim, um dos maiores méritos do filme: reunir dezenas de mecânicas de jogo e elementos narrativos e dar-lhes uma forma de ficção que, naquele mundo, são coerentes.



Assim, os encanamentos são meios de transporte, as plataformas flutuantes foram projetadas para ficarem suspensas no ar, as caixas amarelas são usadas para guardar coisas preciosas como moedas e flores especiais, os arco-íris são estradas mágicas que atravessam de uma terra a outra (como a Bifrost da mitologia nórdica), os Kongs têm karts personalizados e armados porque são usados para a guerra e, não menos importante, um encanador baixinho e bigodudo pode enfrentar seres maiores que ele quando usa itens modificadores especiais, como a flor de fogo, que realmente é uma flor silvestre a ser colhida.

Essa estrutura forma um mosaico a partir da enorme bagagem da franquia Mario, acolhendo as inúmeras pecinhas de referências antigas em uma nova coerência interna.



Comfort food ítalo-japonesa

Entre as referências, uma penca de jogos de NES surgem pela tela, como Wrecking Crew, Punch-Out e Kid Icarus, Ei, eu não sou nem um pouco saudosista dos 8-bits, mas o filme passou mais confiança por mostrar que seus criadores o são, mostrando que a história do filme se mistura à história da própria Nintendo. Até Satoru Iwata é mencionado nos créditos do filme, em homenagem ao saudoso ex-presidente da companhia, falecido em 2015.

Por outro lado, muitas das referências estão ali para ser apenas isso: referências. São easter eggs encaixados em toda parte para ativar a dopamina de reconhecer elementos familiares que decoram os cenários.

A aparição de Diddy Kong, por exemplo, só funciona para quem o conhece, sem qualquer outro contexto. Os próprios karts parecem inseridos ali meramente porque são legais e, honestamente, não os culpo, pois com eles vieram uma das melhores cenas do filme correndo em 200cc por uma estonteante Rainbow Road. Fan service dos melhores.




A forma como vejo a coerência interna e a enxurrada de easter eggs é que o filme abraça sua fonte absurda e dá uma aula de incorporar elementos variados de 40 anos de jogos em um longa-metragem que tem orgulho de ser o que é: um filme de videogame.

Tentativas do passado

Esse é o rumo completamente oposto ao de Super Mario Bros., o filme live-action de 1993, que tentou de tudo para se afastar das raízes de jogos infantis, transmutando-os em um mundo sombrio e distópico de estética cyberpunk, até que qualquer semelhança com a fonte se tornasse mera coincidência genérica.  Eu era criança na última vez que assisti ao filme, mas nem naquela época conseguiam me fazer acreditar que aquilo era Mario.

Lembra do desenho animado Super Mario Bros. Super Show? Aquele desenho animado que sempre começava e terminava com atores reais encenando Mario e Luigi em sua casa no Brooklyn, recebendo convidados especiais (teve até Elvira, na imagem abaixo) em episódios de sitcom. Acho que, no geral, fez um bom trabalho para a época. Não quero dizer que seja realmente bom, mas que, considerando o ainda pequeno acervo de jogos de mundos incoerentes que a dupla estrelava, o programa de televisão servia como uma releitura possível daquelas histórias mínimas.




Não há dúvidas que o cartoon fez um trabalho incomparavelmente melhor que o filme, mas, com tantas adições ao imaginário da franquia ao longo de anos e décadas, hoje não passa de uma curiosidade de um tempo que já passou. Agora é a vez de algo mais.

It’s-a me!

Super Mario Bros. O Filme consegue andar na mesma corda bamba que a Nintendo quando faz jogos simples, ingênuos, divertidos e contagiantes, sob o risco de serem descartados como infantis demais para o interesse de qualquer outro público. Ambos conseguem manter bom equilíbrio pela força do carisma, assim como ambos, de vez em quando, também dão derrapadas na superficialidade.



Os jogos, porém, têm a vantagem da gameplay, enquanto o filme tem apenas a narrativa audiovisual para se amparar, tornando mais desafiador compensar com carisma e design as tramas geralmente despretensiosas e com desenvolvimento mantido no mínimo, típicas de algumas franquias da Nintendo.

Por outro lado, Super Paper Mario (Wii) está aí para mostrar que Mario não precisa ser só pulos e cores, mas também pode ter uma história interessante e bem elaborada que merece nossa atenção para além da familiaridade e da gameplay.

Como o filme apresenta uma história de origem, vemos um pouco de amadurecimento na dupla de encanadores que se mistura à própria filosofia de videogame: Mario, como os jogadores, não sabe quando desistir e tenta até conseguir; Luigi, o medroso, sabe agir quando precisam dele, fazendo por merecer sua inclusão no título do filme por meio do “Bros.”.




Há até uma breve menção ao passado da Princesa Peach, o que merece ser aprofundado em um hipotético próximo filme ou série em streaming. Na verdade, quando pensamos que há mais de uma centena de jogos de Mario e companhia, podemos ver uma infinidade de pontos de partida para muito mais histórias para costurar esses pedaços em uma grande e colorida colcha de retalhos. Um “Marioverso” com potencial para tanto agregar o vasto legado histórico da franquia quanto para expandir com novas ideias, como Ju sentiu falta.

Assim, novamente enfatizando o formato de filme de origem, não me incomodou que o roteiro tenha decidido olhar para trás, quase como um museu que se define pela reunião de objetos organizados para um passeio pela história. Super Mario Bros. O Filme é uma colagem bem-feita que condensa em menos de 90 minutos o máximo de matéria-prima arqueológica dos irmãos ítalo-americanos. Essa duração não me agradou, mas tenho a sensação de que, dada a simplicidade do enredo, mais tempo de filme resultaria apenas em enrolação.



Aonde a odisseia de Mario o levará?

A questão que fica é: e os próximos filmes? Sim, claro; sequências fazem parte do plano, tem até cena pós-créditos fazendo o gancho para personagem surpresa. Além disso, a estreia foi bem de bilheteria e, se continuar assim, não será a última vez que veremos o Reino do Cogumelo na telona.

De minha parte, adoraria ver Yoshi em uma aventura pela Terra dos Dinossauros, passar por um castelo cheio de quadros que levam a mundos pintados, conhecer Rosalina em uma galáxia muito, muito distante e dar uma volta ao mundo com Cappy. Ou seja, minha imaginação vai direto ao que me é familiar, buscando encontrar aquilo que já conheço e aprecio.

Talvez uma fórmula tão previsível não demorasse a se tornar cansativa, por mais encantadora que seja a execução. O que espero de novidade não é exatamente uma expansão com novos rumos para o universo de Mario; há possibilidades mais que suficientes entre o que já existe.



Acredito que o que me surpreenderia seria a construção de filmes (ou séries) densos de referências, mas narrativamente ambiciosos, que conseguissem se erguer com uma combinação inesperada dos tantos tijolos diferentes que formaram todos esses jogos.

Familiar, porém novo. Novo, porém familiar. Um meio-termo que não conseguiremos definir exatamente, mas que nos satisfaça com seu talento para divertir e encantar e vá além da introdução que Super Mario Bros. O Filme nos trouxe.

Revisão: Diogo Mendes
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Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies. Veja minhas análises no OpenCritic.
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