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Análise: ELEA: Paradigm Shift (Switch) debate relações entre pessoas em um futuro tecnológico

Narrativa interativa traz ótima construção de mundo e gráficos avançados para o console híbrido, mas é prejudicada por problemas de performance e de polimento.


Toda vez que nós, redatores do Nintendo Blast, somos apresentados à possibilidade de analisarmos os mais recentes lançamentos do Nintendo Switch, conferimos uma breve sinopse e um trailer de cada título disponível para nos ajudar na complexa decisão de assumir um jogo para si nas próximas semanas. É por meio dessa pequena prévia que entendemos o gênero do game, sua jogabilidade e do que ele se trata. Nesse momento, tiramos todas as dúvidas antes de mergulharmos no jogo.


Esse não foi o caso de ELEA: Paradigm Shift. Apesar de uma sinopse aparentemente normal, o trailer do título do estúdio búlgaro Kyodai causa mais questionamentos do que elucidações. Uma pesquisa mais aprofundada sobre o game mostra que, em seu lançamento original para PC, PS4 e Xbox One em 2018/2019, sob o nome ELEA - Episode 1, o mesmo aconteceu. Luzes coloridas, imagens surreais, narrações misteriosas e um clima celestial fizeram parte de cada peça de divulgação do jogo. É um terreno fértil para a curiosidade e quem decide explorá-lo no Switch encontra uma narrativa envolvente, um mundo bem construído e gráficos parrudos para o console, mas também se depara com glitches e problemas de performance que prejudicam a imersão no game.

Exploração em prol da narrativa

Duas coisas são capazes de se entender do trailer de lançamento logo de cara. A primeira é que o jogo é uma narrativa interativa em primeira pessoa, na qual a história é desenvolvida a partir de exploração, interações com objetos e conversas com outros personagens, sem combates intensos. É o estilo de game pejorativamente chamado de walking simulator. Para que um título nesse estilo funcione, é preciso que o enredo seja, além de bem contado, cativante. Afinal, ele é o carro-chefe do jogo. ELEA não quebra paradigmas, nem provoca inovações na maneira de expor seus acontecimentos, mas cumpre plenamente essa necessidade.

Por meio de textos, áudios e imagens espalhados pelos ambientes, o mundo em que a protagonista River Elea Catherine Jones vive ganha forma. O ano é 2093 e uma mutação genética faz com que crianças se tornem excessivamente agressivas, a ponto de ameaçarem a vida de outras pessoas, inclusive adultos. Porém, somente aquelas que nascem na Terra sofrem dessa condição. Com o medo dessa pandemia, a humanidade, que a esse ponto já colonizou Marte e as luas de Saturno, busca refúgio em um exoplaneta parecido com a Terra. Uma expedição é enviada para analisar as condições de habitação nesse astro, mas misteriosamente a nave para de emitir sinais de funcionamento. Uma nova equipe é formada para investigar esse problema, a qual inclui Elea, cujo marido encontra-se na embarcação silenciosa.
Apesar de terem um tamanho de fonte pequeno, os textos que apresentam a história são bem feitos.

Com uma breve explicação da história logo no início do jogo, grande parte da construção do universo do game se dá de maneira não linear, dependendo da ação do jogador. Ao vasculhar cada canto dos cenários, é possível encontrar itens como revistas, livros e smartphones, que introduzem diferentes aspectos complementares da sociedade futurista em que a personagem está inserida. Uma matéria relatando um caso de violência entre crianças, por exemplo, pode citar um termo inicialmente desconhecido, mas que é explicado por meio do resumo de um livro que é encontrado mais à frente. Ao fazer essas ligações entre informações coletadas durante o gameplay, é possível compreender o contexto maior do jogo. Isso reforça justamente suas características de narrativa interativa, já que, sem investigar o ambiente ao redor, a experiência torna-se bem mais empobrecida.

Mesmo usando recursos audiovisuais ocasionalmente, a maior parte do lore do game é introduzida por meio de textos. A apresentação dessas escritas é problemática, com letras muito pequenas, tornando a leitura cansativa, principalmente na tela portátil do Switch. Porém, o conteúdo compensa esse sacrifício. Os textos são bem produzidos, seja para representar conversas entre dois personagens ou para simular obras acadêmicas e jornalísticas. A quantidade de detalhes que apresentam é admirável, fazendo com que o mundo do jogo se torne mais robusto e vivo. E, acima de tudo, levantam questões nas entrelinhas que, em breve, nossa sociedade real deverá enfrentar, como o avanço das tecnologias de realidade virtual e realidade aumentada, nossa presença no planeta e no Sistema Solar e as relações humanas em meio a tudo isso. Porém, vale lembrar que é necessário um conhecimento razoável em inglês para aproveitar a narrativa.
Elea refletindo sobre o papel dos seres humanos no universo.

Colírio para os olhos

O segundo ponto facilmente compreensível do trailer de ELEA é sua qualidade gráfica. O título é produzido com Unreal Engine 4 e, de acordo com o vídeo, emprega uma série de técnicas, como luzes volumétricas e dinâmicas, reflexões sobre superfícies e oclusão ambiental. São efeitos que, embora rodem sem grandes problemas em outras plataformas, exigem bastante da GPU portátil do Switch. Por isso, é muito bom constatar que o port feito pela Kyodai, com basicamente duas pessoas na equipe, é de qualidade, chegando a se equiparar com o trabalho que outras empresas maiores tiveram ao levar seus jogos graficamente complexos para o console híbrido.
Acredite: isso está rodando em um Switch.

Em um comentário postado num vídeo do site Nintendo World Report sobre o game, o diretor criativo e designer Ivaylo Koralski explica que para fazer com o que o título atingisse 30 frames por segundo e tivesse a mesma visão das versões para PS4 e Xbox One, as luzes, sombras dinâmicas, efeitos e materiais foram otimizados individualmente. Uma resolução dinâmica também é empregada, podendo variar entre 720p e 1080p na dock e 360p e 720p em modo portátil.

Esse trabalho de otimização é sentido ao jogar. Em todas as muitas situações que envolvem luzes, sombras e reflexões, esses elementos interagem entre si em tempo real. Fontes luminosas parecem emitir raios reais, superfícies metálicas reagem à incidência de luz e à posição da câmera e objetos fazem sombra quando iluminados. Isso é particularmente aparente nos acontecimentos surreais do jogo, que envolvem diversas partículas e modelos que emitem luzes de diferentes cores. É algo raramente visto no Switch.
Momentos surreais usam muitos efeitos de luz e deixam a pergunta: o que foi que acabei de ver?

Tal nível gráfico, no entanto, traz duas consequências ao título: uma positiva e uma bem negativa.

Um mundo real

Do lado positivo, a direção de arte do game utiliza as capacidades visuais citadas para aprimorar ainda mais a construção dos espaços da narrativa. Enquanto os textos encontrados pelos cenários desenvolvem o universo de Elea com foco no passado, os gráficos constroem esse mundo no presente. Há aqui um ótimo trabalho de design para fazer com que os ambientes explorados passem a sensação de terem vida para além do jogo.

A maior parte dos acontecimentos se passa em dois locais: na casa da protagonista e em uma estação espacial. Se estamos de 50 a 70 anos no futuro, então os recintos refletem isso. Na residência, há vasos que flutuam, espelhos digitais, luzes que acendem e apagam conforme sua posição e telas que ligam com a proximidade. Já a nave possui estações de realidade aumentada, assistentes virtuais e roupas que fazem as pessoas flutuarem. Além disso, cada pessoa se comunica remotamente com outras a partir de uma pulseira que remete a um smartwatch. Tudo cria uma sensação de distopia futurista parecida com a de filmes como Blade Runner e 2001: Uma Odisseia no Espaço.
Os corredores da futurista estação espacial.

Porém, é na atenção aos detalhes que mora o charme do título. Há uma série de espaços e objetos interativos completamente modelados que não servem propósito algum para a história, mas que estão lá para ressaltar que esse é um mundo real, com seres humanos reais. É um prazer andar pela casa, por exemplo, e encontrar salas como um spa, uma garagem ou até mesmo um banheiro e ver que elas são todas desenhadas pensando na comodidade de uma família. Na estação espacial, o contrário acontece: o design reflete um ambiente de trabalho, com corredores limpos e organizados e salas cheias de computadores e centrais de comando. Brinquedos espalhados por um quarto de criança, apetrechos sem sentido encontrados em gavetas ou vestidos em armários, os quais podem ser olhados minuciosamente sem finalidade alguma, também ajudam a trazer esse senso de realidade.
O quarto de Elea: um ambiente que não é fundamental para a história, mas ajuda no desenvolvimento do mundo do game.

Aventura em meio aos glitches

Por outro lado, a exigência técnica que o game traz ao hardware do Switch faz com que a jogabilidade não seja tão fluida quanto se espera. Não são raros os momentos em que, ao simplesmente percorrer os cenários, o jogo dá leves travadas, como se precisasse de um segundo para carregar seus assets. Além disso, é notável a queda de quadros por segundo ao se jogar em modo portátil. Tais problemas, porém, não chegam a atrapalhar tanto assim a experiência e são até justificáveis devido às configurações do Switch.

O que realmente prejudica a imersão, no entanto, são os constantes erros que forçam o game a encerrar. Em minha experiência de cinco a sete horas com o título, ele foi interrompido inesperadamente três vezes devido a erros não detalhados pelo sistema do console. Em cada um desses crashes, eu estava em situações distintas. Entretanto, logo no primeiro, o jogo, ao ser reiniciado, entrou em um estado em que não conseguia carregar o mapa, ficando eternamente na tela de loading. A única solução foi jogar fora meu save de duas horas e recomeçar. Uma situação extremamente frustrante e que provocou o medo de que, a qualquer momento, todo o progresso no game poderia ir por água abaixo.
A tela que, infelizmente, é comum durante o gameplay.

Aliás, o jogo inteiro exibe uma certa falta de polimento que traz a impressão de se estar jogando por meio de bugs. E não os bugs intencionais que às vezes aparecem na aventura. Glitches de verdade, como as pernas de um NPC aparecerem saindo do chão e se debatendo sem sentido, ou o modelo de Elea aparecendo por um centésimo de segundo na frente do jogador quando, na verdade, ela está deitada em sua cama.
Só um par de pernas saindo do chão em um glitch. Nada mais.

Essas falhas não estão presentes só no aspecto visual, mas encontram-se também no botão de pausa que para de funcionar por uma grande extensão do jogo e na mixagem de áudio, que faz com que as vozes de alguns personagens sejam extremamente baixas, incapazes de se entender sem legendas ligadas. A propósito, algumas atuações de voz são bastante ruins, com uma entrega ineficaz das falas, combinando com a expressão facial sem vida que a maioria dos NPCs possui.

(Quase) alcançando as estrelas

O trabalho realizado pelo estúdio Kyodai em ELEA: Paradigm Shift é digno de atenção. Uma equipe independente, com duas pessoas somente, conseguiu fazer rodar gráficos bem avançados no Switch e, mais importante, criar um mundo cheio de vida e uma história cativante, dois pontos cruciais para o gênero de narrativa interativa.

Porém, problemas técnicos, como glitches que atrapalham a imersão e bugs que derrubam o jogo a qualquer momento, somados a uma geral falta de polimento nos aspectos visuais e sonoros, fazem com que o título não alcance todo o seu potencial.

O game encerra-se bem no clímax da sua narrativa, permitindo que uma continuação seja possível. Se o subtítulo Episode 1 presente nos outros consoles indica algo, pode ser que, em breve, a história de River Elea Catherine Jones tenha sua conclusão. Porém, a mudança do nome para Paradigm Shift não levanta esperanças para uma sequência. A Kyodai já disse, no vídeo do Nintendo World Report, que seu próximo projeto será feito com o Switch em mente desde o início. É torcer para que o enredo possa se encerrar com um jogo mais polido.

Prós

  • Ótimos gráficos que puxam o Switch aos seus limites;
  • Boa construção de mundo por meio de textos, imagens, áudios e modelagem de ambientes.

Contras

  • Problemas técnicos, como quedas de quadros por segundo, que atravancam o gameplay;
  • Bugs constantes que interrompem o game inesperadamente, podendo fazer com que ele seja incapaz de carregar seus assets ao ser reiniciado;
  • Falta de polimento geral, com glitches visuais, recursos que param de funcionar do nada e uma ruim mixagem de som.
ELEA: Paradigm Shift - Switch/PS4/Xbox One/PC - Nota: 6.5
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Jorge Neto
Análise produzida com cópia digital cedida pela Kyodai

Jornalista, analista de mídias, PcD e entusiasta de games desde que jogou Pokémon Azul no Game Boy Color nos anos 90. De lá para cá, tenta aproveitar ao máximo todos os consoles no pouco tempo que a vida adulta permite. Se não está escrevendo para o Blast ou demorando anos para zerar um jogo, está no Twitter (@DanielMorbi) e no Instagram (@danielmorbi_)
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