Análise: Fez (Switch) é seguramente um dos mais elegantes e criativos jogos de puzzle já feitos

Um dos mais brilhantes indies de todos os tempos encontra-se agora no lugar onde sempre deveria ter estado, em um portátil da Nintendo

em 27/04/2021



Originalmente desenvolvido de forma independente pela Polytron Corporation e publicado pela Trapdoor, Fez é um jogo de puzzle em plataforma desenhado e idealizado por Philippe Poisson (Phil Fish) com uma inovadora mecânica de rotação 2D e conceitos estéticos que proporcionam um encontro entre os clássicos da Nintendo da era 8-bit com a filosofia de design por subtração de Fumito Ueda.


Mesmo após quase dez anos de seu lançamento, Fez chega ao Switch e sua estética e mecânica continuam impressionantemente frescas. Desse modo, o título parece ser mesmo uma indicação eterna para aqueles que apreciam criatividade e elegância na arte dos videogames. Ademais, agora pode ser apreciado com a portabilidade do híbrido da Nintendo e dividir espaço na mesma biblioteca em que estão os sucessores de alguns dos clássicos que o inspiraram: Tetris (GB), Super Paper Mario (Wii), séries The Legend of Zelda e Super Mario Bros., entre outros títulos.

Ainda que com algumas poucas escolhas questionáveis de design e de execução mecânica, não há sombra de dúvida de que Fez cumpre seus objetivos; os quais, diga-se de passagem, não são nada triviais de se cumprir. Por um lado, funde muito bem o carisma 8-bit da Nintendo com o subtracionismo estético de Ueda; por outro, oferece um ótimo level design de puzzles simples e criativos em um mundo que, aberto e relaxante, a todo momento convida o jogador a explorá-lo.

Confira nesta análise por que esse brilhante clássico definitivamente merece a sua atenção e por que o Nintendo Switch é uma excelente plataforma para aproveitá-lo.







Um elegante design carismático e subtracionista

Fez possui dois pilares estéticos muito nítidos. Por um lado, várias escolhas que seguem um design por subtração; por outro, escolhas que procuram capturar a nostalgia e o carisma de alguns dos mais notáveis títulos da era 8-bit. Comecemos por esse segundo pilar, do design retrô.

O jogo possui uma pixel art simples que lembra a de jogos da era 8-bit. O design dos personagens é extremamente minimalista, reduzindo a personalidade de cada um a algo específico (tapa olho, chapéu, barba, bengala etc.). E os poucos diálogos são cuidadosamente pensados para serem sucintos, informativos e bem-humorados.

Os cenários, por sua vez, exploram muito a verticalidade junto de uma mecânica rotatória de perspectiva 2D. Muitas vezes lembrando as torres rotatórias (imagem abaixo) do clássico Nebulus (Multi), do início da década de 1990.


Suas cores são quase sempre vivas, como as de Super Mario. Algumas vezes, porém, o jogo também sabe oferecer cenários e sons misteriosos, como os das dungeons de The Legend of Zelda; também cenários com uma expressão mais solitária, utilizando um filtro que lembra os gráficos do Game Boy; e às vezes também dramática, com relâmpagos súbitos ou ao utilizar flashes de luz que mesclam a iluminação noturna e matinal.





Todo o carisma e nostalgia de Fez ainda divide espaço com seu subtracionismo.

A fim de abreviação, chamaremos de “subtracionismo” uma conhecida filosofia de design criada por Fumito Ueda, a qual é denominada “design por subtração” e que não deve ser confundida com o minimalismo em artes visuais, embora a analogia com esse movimento artístico seja compreensível.
Em linhas bem gerais, o subtracionismo visa encontrar a essência de um jogo e apresentá-la de uma forma mais íntima e bem direcionada, evitando um excesso de elementos estéticos e mecânicos suplementares desnecessários para a apreciação dessa essência; e que muitas vezes podem até desviar a atenção do jogador.

Se a essência de Fez não estivesse clara, já não seria um bom sinal para sua execução do subtracionismo, mas felizmente não é o caso. Fez é um jogo sobre percepção, mais especificamente sobre percepção espacial, e argumenta sobre como essa percepção (subjetiva) é capaz de alterar a realidade (objetiva).

Para passar essa informação justo no começo do jogo, antes até da introdução da mecânica rotatória de puzzle, são utilizados alguns poucos diálogos (existem pouquíssimos em todo o jogo). Um desses diálogos, por exemplo, é o de um jovem de óculos que pergunta ao jogador qual sua forma geométrica favorita e se adianta a responder:
“A minha é o quadrado! O cubo é que não! Porque isso não existe.”
O jogador controla Gomez, um personagem de design muito simples cujo único diferencial é seu chapéu vermelho. Ele o recebe de um velho morador de sua vila que não enxerga mais com um dos olhos; o que faz alusão à ideia mecânica do jogo, pois sem um dos olhos não é possível ter noção visual de profundidade.




O pequeno chapéu vermelho de Gomez torna-o capaz de girar a câmera 2D. Esse giro pode ser feito apenas de forma lateral, como se estivesse a ver quatro lados diferentes de um cubo. Não, porém, de uma forma usual. O giro reconfigura os elementos relevantes no cenário para a interação, podendo, por exemplo, diminuir a distância entre duas plataformas, unir duas estruturas em uma ou bloquear uma porta com uma cachoeira (já que a movimentação é side-scrolling e não leva em conta a profundidade).

Puzzles em plataforma criativos e bem executados, mas que raramente mostram-se desafiadores

As principais mecânicas de Fez podem ser divididas em três categorias:
  • mecânicas de ação em plataforma à moda da trilogia Mario Bros.;
  • mecânicas de exploração;
  • mecânicas rotatórias 2D de puzzle voltadas para o raciocínio indutivo.
A influência dos jogos 8-bit acima citados bem como o subtracionismo de Ueda nitidamente refletiram não só na estética, mas também nas mecânicas do jogo. Os reflexos mais notáveis estão, por um lado, na reimaginação de mecânicas da trilogia Mario Bros. e The Legend of Zelda e, por outro, na ausência completa de inimigos.

As mecânicas de ação em plataforma não são muitas, infelizmente quase sempre foram subutilizadas e dificilmente mostraram algum desafio real. Em geral, trata-se quase sempre de coisas já implementadas na trilogia Mario Bros., como plataformas que impulsionam o personagem para cima, outras que o podem esmagar, outras que se movem etc.

Contudo, algumas dessas mecânicas usuais em jogos de ação em plataforma foram integradas à mecânica rotatória de Fez e resultaram em experiências interessantes, como ao poder girar a câmera para mudar a trajetória pré-estabelecida de uma plataforma móvel ou enganar duas plataformas que iriam esmagar Gomez. Outro bom exemplo a esse respeito é o de um mecanismo com o qual pode-se alterar o nível da água ao mesmo tempo em que gira o cenário.



Por sua vez, se as mecânicas de plataforma, apesar de inovações, devem muito à trilogia Mario Bros., as mecânicas de exploração devem muito à série The Legend of Zelda.

As mecânicas de exploração não são muito presentes em Fez, mas chegam a ser relevantes. Há, por exemplo, bombas que podem ser utilizadas para desobstruir passagens; mapas sobre segredos que podem ajudar o jogador a descobrir cubos escondidos; algumas portas trancadas que requeiram alguma chave genérica encontrada em baús; além de vários segredos que escondem anti-cubos.





Por fim, chegamos ao ponto alto das mecânicas do jogo: os momentos dedicados a desenvolver o raciocínio indutivo por meio de sua mecânica rotatória de perspectiva 2D.

Um puzzle de raciocínio indutivo, como recentemente (26/04) descrito em um ensaio para a Super Jump, é um tipo de puzzle cuja resolução pode ser obtida pela experimentação de mecanismos ou objetos ao redor do puzzle antes de resolvê-lo, exigindo também suposições, observação, verificação e exploração para melhor compreendê-lo. Assim são os puzzles de Fez.

Fez traz alguns mecanismos únicos que só fazem sentido dentro da possibilidade de rodar seu paradoxal mundo cúbico. Há, por exemplo, plataformas que giram a perspectiva 2D quando Gomez está sobre elas; também há estruturas que interagem diretamente com as habilidades de Gomez; e ainda pode ser encontrado um determinado totem em que gira a perspectiva do cenário quando Gomez encontra-se incapaz de fazê-lo. Pena que esse último mecanismo foi pouco aproveitado; tinha grande potencial para tornar o gameplay mais desafiador.

Um relaxante e misterioso mundo a ser explorado à beira de seu colapso

O mundo carismático, nostálgico e subtracionista de Gomez é povoado de mistérios não só sobre sua configuração espacial, mas também sobre seu passado. Os cenários frequentemente estão repletos de estruturas misteriosas, runas, lápides, inscrições antigas e passagens secretas, sempre em uma linguagem sem tradução, tal qual as linguagens presentes nos trabalhos de Ueda: Ico (PS2/PS3); Shadow of the Colossus (Multi); e The Last Guardian (PS4).

O curioso é que a experiência visual, sonora e de gameplay de Fez é muito relaxante, mas seu mundo, na verdade, está à beira do colapso. O que se torna cada vez mais claro no decorrer da jornada. E apesar de Gomez ser o único de sua vila capaz de desvendar os segredos daquele mundo, não é nada fácil fazê-lo; e algumas pontas soltas permanecem propositalmente na obra, deixando uma boa margem para interpretação.

Em todo caso, a jornada de mistério é, assim como no caso de Ico, acompanhada quase sempre só por efeitos sonoros, que contribuem com a aura de mistério. Porém, Fez também se utiliza de alguns poucos sons sintéticos relaxantes para música ambiente; ou seja, como explicado em uma matéria recente (16/04) sobre Hyrule Field Theme, trata-se de um tipo de composição que se mistura com os efeitos sonoros e sons naturais do próprio cenário (diferente, portanto, de uma “música de fundo”).

Além disso, ainda que poucas vezes, Fez chega a ter, em sua OST, ritmo e melodia mais claros. O ponto mais alto nesse sentido é um excelente e expressivo arranjo sintético do prelúdio em Mi menor (op. 28, n. 4) do compositor romântico Frédéric Chopin.


Certamente um dos melhores jogos indies para Nintendo Switch

Pela análise acima, evidencia-se a qualidade desse indie, o qual, diga-se de passagem, ainda tem o mérito de ter sido um dos pioneiros títulos de destaque da primeira onda de jogos indie na indústria, lá no começo da década passada.

Fez possui uma estética única e visionária, afinal não é algo trivial unir o conceito de Ueda (inicialmente pensado para jogos em 3D com apelo mais cinematográfico) com um visual à moda da era 8-bit e que consiga ser, ao mesmo tempo, carismático e profundo; bem como misterioso e bem-humorado.

Muito embora, conforme observamos na história da Intelligent Systems (parte 4), haja precedentes de mecânicas que envolvem alternar perspectiva 3D para 2D, como em Super Paper Mario (Wii), na parte do gameplay, o brilhantismo de Fez é ainda mais evidente, pois essa mecânica nunca foi utilizada para especializar um jogo no gênero de puzzle. A execução de Fez, embora única por sua grande qualidade, não é de se espantar que tenha influenciado muitos outros jogos desde então, como Monument Valley (Mobile).

Os problemas de Fez são muito poucos, provavelmente o mais grave deles seja o fato de ser pouco desafiante. É muito fácil raciocinar indutivamente para resolver seus puzzles. Os problemas mais difíceis são os que escondem os anti-cubos, mas que são opcionais.

Talvez no Switch Fez tenha encontrado sua plataforma ideal. Mesmo que às vezes a visão da câmera possa parecer um pouco distante demais de Gomez, a jogatina de Fez, especialmente em modo portátil, é extremamente agradável e prática, assim como  foram as de tantos outros jogos de puzzles em portáteis da Nintendo. Ademais, o híbrido da Nintendo é o lar perfeito para um jogo com características também de Super Mario e The Legend of Zelda que agradarão os fãs dessas séries desde o início do gameplay, quando Gomez ganha como acompanhante um cubinho mágico cuja função não é outra que a da clássica Navi de Ocarina of Time.

Prós

  • Atmosfera relaxante e misteriosa;
  • Design carismático, nostálgico e expressivo;
  • Mecânicas bastante originais, inteligentes e criativas de puzzle;
  • Ótimo level design vertical de plataforma e de exploração em mundo aberto;
  • Boa música ambiente;
  • Excelente integração do design e da narrativa em torno da mecânica central.

Contras

  • Câmera às vezes um pouco distante demais, não podendo ser ajustada;
  • Mecânicas de plataforma subaproveitadas;
  • De modo geral, puzzles muito pouco desafiadores.
Fez — X360/PC/PS3/PS4/PSVita/iOS/Switch— Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Icaro Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Polytron Corporation




Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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