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A Poética do Design Narrativo em Videogames

Como tornar os mundos fictícios dos videogames mais imersivos e convincentes.


Se os videogames têm o poder de fazer os jogadores se sentirem dentro de uma história fictícia, os videogames também têm o poder de fazer as histórias parecerem reais.


Em suas Lições de Estética, Hegel chamou Aristóteles de “médico da arte” como forma de criticar a maneira como ele tentava “curar” e “ensinar” os poetas e dramaturgos de seu tempo, e não apenas analisar suas obras e a natureza delas, como seria esperado de um filósofo da arte.

Aristóteles, em sua Poética (1451b), defende que a poesia, diferentemente da historiografia, não fala sobre o que aconteceu, mas sobre o que poderia ter acontecido ou ainda pode acontecer, e que o poeta deve escrever de tal forma a buscar verossimilhança, tornando o mítico parecer real. Isso também pode ser aplicado aos videogames, levando em consideração as camadas de experiência sensorial e interatividade que são características desse meio.




Atualmente, a postura filosófica de Aristóteles na Poética certamente não é adequada para um filósofo, mas hoje cometerei um pouco desse pecado aristotélico. Não tanto porque acho que há algo de errado com a maneira como algumas histórias de jogos são escritas, mas porque acho que alguns escritores de videogames deveriam usar alguns dos ensinamentos de Aristóteles. Estou aqui para mediar a aplicação desses ensinamentos às peculiaridades dos videogames.

Mais especificamente, neste ensaio, mostrarei premissas e exemplos de:
  • Como construir mundos não-dualistas;
  • Como projetar ecossistemas e personagens que interagem de forma mais orgânica, coerente e realista; e
  • Como escrever performances que sejam, ao mesmo tempo, sensíveis, interativas e plausíveis.


Construindo mundos não-dualistas

Na Poética (1453a), Aristóteles argumentou que o enredo mais trágico empurra um bom personagem para um infortúnio imerecido por causa de um “erro” ou “falha” (hamartia). As tramas que giram em torno de tal erro são mais trágicas do que as tramas com dois lados e um desfecho de oposição entre o bem e para o mal.

No reino das artes hoje — incluindo videogames —, essa questão precisa ser levada mais adiante. As tragédias gregas são geralmente baseadas em um enredo comum (mythos) em torno da mitologia grega, principalmente que remonta às obras de Homero, como a Ilíada e a Odisseia. Por outro lado, os videogames muitas vezes criam sua própria mitologia e as regras centrais de sua ficção, exceto para franquias de ficção histórica como Crusader Kings (PC) ou aquelas baseadas em mitologias preestabelecidas como Hades (Multi).




Assim, videogames, cinema, literatura moderna etc., podem criar um contexto dualista de bem versus
mal para sustentar o enredo da história, e essa premissa simplista pode resultar em uma experiência previsível e superficial.

Há exceções, e algumas obras podem usar essa dualidade justamente para criticá-la e refletir sobre ela. É o caso de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman; O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago; e Shin Megami Tensei III: Nocturne (Multi), dirigido por Katsura Hashino.





Como Nicolas Turcev escreveu em seu livro The Strange Works of Taro Yoko: From Drakengard to NieR: Automata (2018):
Aliás, os jogos, como qualquer outro meio, são indicadores valiosos de como tentamos representar nossa interação com o mundo e definir seu sistema de valores.
No entanto, se um escritor de videogames está interessado em construir uma narrativa e personagens com traços mais convincentes, sensíveis e complexos, em geral, é preferível que ele evite criar o mundo ficcional com base dualista.

É o que acontece, por exemplo, em Final Fantasy III (Multi), escrito por Kenji Terada (escritor de cena) e Hironobu Sakaguchi. O jogo traz a ideia de que há, de tempos em tempos, guerreiros da luz escolhidos para lutar contra o mal. Essa premissa, se executada diretamente, garantirá que o jogador sempre estará do lado do bem e que o mal que enfrenta é algo claro, o seu distinto.




Algo análogo, envolvendo um contexto histórico, é o que acontece com o roteiro de Michael Schiffer para Call of Duty (Multi). O jogo faz o jogador ver a guerra apenas do ponto de vista dos soldados americanos e um pouco dos russos. Não há empatia ou compreensão pelos combatentes alemães, muitos dos quais não são soldados por vontade própria e, historicamente falando, muitas vidas, famílias etc., são “invisíveis” para o jogador.

Claro, os autores de Final Fantasy III e Call of Duty não pretendiam criar um roteiro que fosse mais sensível, plausível e complexo de uma forma ampla/global. Escolher mergulhar o jogador em um único lado da história e torná-la dicotômica e simples é uma alternativa válida, podendo entregar experiências interessantes em alguns casos.

O fato é que se o escritor começar com uma visão de mundo marcadamente dualista, dificilmente conseguirá construir personagens e tramas que demonstrem maior complexidade. Em mundos em que é fácil encontrar onde está o lado bom e onde está o lado do mau, os personagens geralmente não passam de peças de cada lado do tabuleiro.




Existem duas alternativas principais para uma visão de mundo que conduza a tramas mais sensíveis e complexas. A primeira delas é uma concepção polivalente das forças mundiais; a segunda alternativa é uma visão de mundo naturalista.

Um mundo governado por diferentes forças está fundado em uma "premissa polivalente" (de muitos valores), como eu a chamo. Em Dark Souls (Multi), por exemplo, os personagens principais têm seus próprios interesses independentes em uma mitologia trágica para todos. Outro exemplo é Hades, em que cada divindade tem um interesse próprio na trama; os lados “bom” e “mau” não são claros, e a princípio o protagonista é movido apenas por uma motivação muito pessoal e familiar.




Por outro lado, uma visão de mundo ficcional naturalista envolve evitar suposições sobrenaturais e fortes suposições metafísicas para a motivação dos personagens. No mundo da série Fallout, por exemplo, existem diferentes aldeias em um cenário pós-apocalíptico que tentam formar hábitos culturais e regras de conduta em diferentes regiões. Existem diferentes forças (aliadas e inimigas) responsáveis pelo mundo que é apresentado ao jogador.

Outro exemplo é Disco Elysium (2019), escrito por Robert Kurvitz, em que há uma variedade de ideologias políticas e morais extremistas (comunista, fascista, ultraliberalismo etc.).





Tanto um mundo governado por diferentes forças naturais e morais quanto um mundo construído de maneira naturalista geralmente levam a uma concepção moral mais ampla. Assim, enquanto em Star Wars: Knight of the Old Republic (2003) o jogador está do lado da luz ou do lado escuro da força, em Dark Souls ou em Hades, ele nunca se depara com “certo e errado”, mas com escolhas (predeterminadas ou não) que podem ser julgadas “certas” ou “erradas” dependendo do personagem com o qual ele interage na trama.



Conceitos de Ecossistema e Personagem

Outro fator importante a ser considerado para que uma narrativa se torne mais crível é o elenco de personagens. Em Death in the Afternoon (1932), Ernest Hemingway argumenta que
Ao escrever um romance, um escritor deve criar pessoas vivas; pessoas não são personagens. Um personagem é uma caricatura.
Neste tópico abordarei três características importantes para dar vida ou “personalidade” aos personagens:
  • Ecossistema
  • Sensibilidade
  • Motivação
Tradicionalmente, é costume separar, em mundos ficcionais, as meras “criaturas” dos “personagens” principais e secundários. Criaturas como seres meramente funcionais dentro de um grupo da mesma espécie de pouca ou nenhuma relevância para a trama. Por outro lado, os personagens (principais ou secundários) são indivíduos e têm um papel na trama, não apenas uma função mecânica no mundo.




Em muitos jogos isso é até verdade: o fato de existirem 100 tipos de inimigos em vez de 99 não faria diferença no curso dos eventos ou nas linhas de diálogo em muitos RPGs. Mas essa diferença criatura-personagem não é algo dado, e pode ser sutil ou mesmo inexistente em alguns mundos fictícios.

Papers, Please (PC), de Lucas Pope, é um caso de game que só tem personagens – não há distinção entre criatura e personagem. Em Undertale (Multi), por exemplo, embora nem todos os seres que você conhece sejam de grande relevância para a história, cada tipo dá uma experiência de diálogo única e tem suas próprias motivações e emoções, além do fato de você matá-los ou não.




De qualquer forma, mesmo que o desenvolvedor opte por uma separação clara entre criatura e personagem, ainda é conveniente que pelo menos as criaturas estejam em um ecossistema, para que se integrem melhor no contexto do jogo. E criar um ecossistema significa criar relações entre essas criaturas e seu habitat.

The Legend of Zelda: Breath of the Wild (Switch), dirigido por Hidemaro Fujibayashi e produzido por Eiji Aonuma, é um bom exemplo de jogo com um ecossistema que estabelece boas rotinas para as criaturas de seu mundo tanto em relação a outras criaturas (da mesma espécie ou não) e com a paisagem ao seu redor.

O jogo de stealth Hitman (Multi), dirigido por Christian Elverdam, é um exemplo de jogo que estabelece um bom ecossistema entre os personagens, com rotinas complexas e interatividade entre eles. Quanto mais criaturas e/ou personagens interagem entre si e com o ambiente de forma orgânica, mais o mundo ficcional se torna crível para o jogador.





Na série NieR, dirigida por Yoko Taro, vários seres também têm emoções, memórias, sonhos, às vezes motivação (nem sempre, porque também são manipulados) e até religiosidade. Essa maior complexidade das criaturas não apenas torna sua ação no mundo ficcional mais crível, mas também permite que o jogador tenha empatia e compreenda-as, além de borrar a diferença entre o lado “bom” e o lado “mau”.

O próximo passo é criar uma trama crível que aproveite a atuação desses personagens e seu potencial para explorar emoções e reflexões no jogador.



Como tornar o enredo e as performances mais convincentes

Na Poética (1449b), Aristóteles afirma que em uma tragédia perfeita, o personagem dará suporte ao enredo, o que significa que motivações e traços pessoais de alguma forma conectam partes da cadeia de ações de causa e efeito, produzindo pena e medo no espectador.

Destaco aqui três pontos que contribuem para a verossimilhança de uma trama e o uso de personagens para tanto:
  • Regras fictícias;
  • Realismo da animação; e
  • Boa persuasão.
Com exceções, como em uma peça de teatro do absurdo de Samuel Beckett, como Esperando Godot (1952), uma ficção deve ser regida por certas regras, mesmo quando se trata de fantasia. É porque existem certas regras (explícitas ou não) que um leitor de O Senhor dos Anéis (1954), de J.R.R. Tolkien, acharia estranho se Frodo não morresse de repente se fosse esfaqueado no peito ou se, de repente, conseguisse se teletransportar para Mordor.





Isso vale para a narrativa e também se aplica à experiência sensorial (audiovisual) geral do videogame e às mecânicas e interface que permitem sua interação com o jogador. Como afirmou o designer de jogos de puzzle Jonathan Blow em entrevista (2008), esse conceito de ordem ficcional pode ser colocado da seguinte forma:
“[…] em um jogo, você tem que criar um universo simulado que funcione de acordo com algumas regras. […] Tem que estar intacto como um lugar que tem leis e consistência. […]. Eu não posso escrever nenhuma besteira aleatória que eu queira. Não posso fazer nenhum puzzle que tenha uma resposta arbitrária, porque não funcionará no contexto do resto do jogo.”



O primeiro passo para que os videogames sejam críveis é ter regras ficcionais claras para que seja possível discernir o plausível do implausível e o que combina e o que não combina na ação e no roteiro dos personagens. O próximo passo não é tão fundamental quanto o primeiro, mas pode ajudar muito:  são animações realistas.

Os jogos podem variar em estilos artísticos sem prejuízo da imersão e ter gráficos simples, ou possivelmente nenhum. Mas ao optar por gráficos mais elaborados (principalmente em 3D), a animação mais realista dos personagens é algo que contribui para que eles pareçam mais vivos.

A animação realista varia de expressões faciais das emoções de um personagem e gestos corporais de sua fadiga até a maneira como ele se equilibra após um salto, tropeça ao escalar uma montanha ou para após uma corrida.




Esse tipo de estilo de animação é defendido, por exemplo, por Fumito Ueda, criador da filosofia de design por subtração. Mas o diretor da série Dark Souls, Hidetaka Miyazaki, rebateu essa tendência:
“O jogo precisa funcionar bem, cair bem como um jogo, e estou disposto a sacrificar a sensação de realidade para alcançar uma jogabilidade mais forte e mais firme. Do meu ponto de vista, ser capaz de atacar ou defender, esse tipo de animação precisa parecer muito forte.”



De fato, muita ênfase na fluidez e imprecisão da animação às vezes pode prejudicar a jogabilidade desafiadora da ação que se propõe a ser mais precisa e controlada. Por outro lado, um personagem com ações muito precisas e responsivas pode se tornar menos “vivo” e mais parecido com uma máquina de combate. Então isso vai depender da proposta do jogo.

Por último, mas não menos importante, vem o fator de persuasão das ações, fala e pensamentos dos personagens na trama, dado o papel que desempenham nela. Ian Bogost, em Persuasive Games: The Expressive Power of Videogames (2007), chama isso de retórica processual,
“a arte da persuasão por meio de representações e interações baseadas em regras, em vez da palavra falada, escrita, imagens ou imagens em movimento”.
Um computador pode ser usado para processar uma pintura. Desta forma, foi gerado por um processo. Mas, diferente disso, um videogame é um artefato computacional; ou seja, não é gerado por um processo, ele é um conjunto de processos.




Assim como as cores nas imagens, as palavras nos livros e as performances no teatro, os processos nos videogames podem persuadir alguém a mudar ou reforçar suas crenças. Inspirado na filosofia aristotélica, Bogost distingue para a mídia de artefatos computacionais (videogames) três tipos de persuasão (originalmente descritos por Aristóteles):
  • Política;
  • Publicidade; e
  • Aprendizado.
Vale a pena notar que essas categorias se aplicam tanto dentro como fora da ficção. Ou seja, os personagens não apenas tentam persuadir outros personagens em um videogame, mas o videogame como um todo pode persuadir o jogador de certas visões de mundo, mesmo que os desenvolvedores não estejam muito cientes disso.




A diferença é que, enquanto fora do jogo o jogador pode realmente ser persuadido ou não pela proposta do jogo, dentro do mundo da obra, há apenas uma “persuasão emulada”: um personagem fictício finge convencer outro que finge estar convencido ou não.

Do ponto de vista metaficcional, a atuação desses personagens pode ou não ser convincente ou plausível para o jogador. É desejável que seja para que o curso dos acontecimentos seja crível e o jogador sinta que está na frente de ou em um mundo real. Para dar um exemplo extremo: não é plausível que um personagem caracterizado como corajoso e destemido sem qualquer justificativa de repente corresse com medo de uma criatura inofensiva.

Cada interação com um mundo ficcional ou com outros personagens precisa ser convincente no papel que desempenha para persuadir o jogador de tal forma que ele se sinta transformado após vivenciar, de forma imersiva, um conjunto de processos no videogame.



Verossimilhança nos videogames

Neste ensaio, dei algumas sugestões de design narrativo em videogames para criar mundos fictícios críveis. A partir disso, seria possível criar mundos “vivos”, imersivos e coerentes nos quais é possível viver uma narrativa interativa com reações convincentes e persuasivas.

Vários aspectos teóricos mencionados aqui podem ser desenvolvidos em ensaios de jogos posteriores. Mas, por enquanto, minha intenção é fornecer uma visão geral do potencial poético dos videogames do ponto de vista clássico, aristotélico.

Além do inesgotável potencial de entretenimento dos videogames, desejo que os mundos ficcionais desse meio se tornem cada vez mais habitáveis pelos gamers como se esses mundos servissem como uma segunda casa.

Revisão: Janderson Silva
Este texto foi originalmente publicado pelo mesmo autor na SUPERJUMP (inglês)


Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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