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Análise: Voice of Cards: The Forsaken Maiden (Switch) faz jus ao estilo criativo de Yoko Taro

Essa melancólica sequência lembra NieR ao mesmo tempo em que se inclina à nostalgia dos JRPGs clássicos e à imersão imaginativa dos RPGs de mesa.




Desenvolvido e publicado pela Square Enix, Voice of Cards: The Forsaken Maiden é um RPG com cartas (e não de cartas) que continua a série Voice of Cards, sob direção criativa de Yoko Taro e musical de Keiichi Okabe, com design de personagens de Kimihiko Fujisaka.


Notabilizados pela série Drakengard/NieR, esses nomes buscam inspiração no tom narrativo dessa franquia, bem como na dinâmica de RPGs de mesa e em mecânicas de JRPGs clássicos, para entregar uma experiência narrativa independente, melancólica e mais complexa junto de uma expansão aprimorada da exploração e do level design de JRPG clássico do título anterior, Voice of Cards: The Isle Dragon Roars (Switch).

Um dos aspectos importantes a se observar no desenvolvimento de Voice of Cards é seu auterismo, ou seja, o fato de haver uma centralidade das escolhas criativas dessa franquia na figura de um diretor específico (o auteur), nesse caso, Yoko Taro. Como já discuti em um texto recente aqui no Nintendo Blast sobre auterismo, isso tende a conferir a uma obra maior personalidade e maior coerência de design em torno de um estilo e/ou temática que notabilizam o seu auteur.

Essas tendências do auterismo são nítidas aqui em The Forsaken Maiden, mais até do que no título que o antecede na série, porém não garantem que seja uma boa peça. Assim, tratarei de avaliar a execução de suas propostas tanto à luz dos trabalhos precedentes de Taro quanto à luz de outras obras com proposições semelhantes em seu gênero, seguindo o estilo de abordagem que empreguei em minha análise colaborativa de Voice of Cards: The Isle Dragon Roars para o Nintendo Boy. Também indico ouvir meus comentários sobre o jogo em um episódio do MetaQuestCast.

Uma história maior e mais complexa, triste e expressiva

Com o dobro do tamanho da história do Voice of Cards anterior, provavelmente no roteiro de cerca de 24 horas de The Forsaken Maiden é onde se encontram os mais notáveis elementos da direção criativa de Yoko Taro, ainda que não esteja no nível de suas melhores histórias.

De toda forma, o salto de roteiro é notável não tanto pela ramificação da trama, posto que o design de rotas do título anterior, ainda que simples, era mais próximo do estilo de Taro, mas sim pelo conteúdo humanístico da narrativa e pela condução melancólica da trama ligada a personagens mais sensíveis e bem motivados, abraçados por uma direção de arte que aproveita muito mais dos recursos visuais das cartas para transformar o mundo em si praticamente em um personagem à parte, um interlocutor do narrador (Game Master) que “mestra” as seções de Voice of Cards.





De um ponto de vista formal, o roteiro segue a tendência linear do design narrativo dos JRPGs, mas possui algumas ramificações no meio da história e mais opções de diálogo com reações e consequências interessantes, mesmo que a maioria delas continue sendo irrelevante para o fluxo da trama. A maior flexibilidade do roteiro não é apenas temporal, no curso dos acontecimentos, mas também espacial, na exploração náutica e de multiverso.

Os capítulos são na verdade contos separados, interdependentes e ordenados, que podem ser acessados ou via um teletransporte para um mundo paralelo ou por navegação a partir de uma ilha central, ambas as formas a partir de outra ilha central no mapa, onde se passam os momentos iniciais de The Forsaken Maiden.




O jogo se passa em um arquipélago, no qual residem espíritos antigos e uma coleção de armas-relíquias, o que lembra o típico colecionismo de armas da série Drakengard/NieR. Essas ilhas foram protegidas por gerações pela Ordem das Donzelas (Order of Maidens) e seus guardiões, que prolongaram a vida dos espíritos para manter suas ilhas à tona.

No entanto, uma dessas ilhas encontra-se sem sua donzela e, portanto, está fadada à destruição. Um jovem do Vilarejo Ômega (Omega Village) se recusa a deixar sua ilha morrer: Barren, o protagonista. Ele se junta a Laty, uma jovem que não conseguiu se tornar uma donzela da ilha, e um autoproclamado “espírito” — que mais parece um fantoche —, para se aventurar nos mares, com seu navio em forma de baleia, a fim de descobrir mais sobre essa mitologia nas demais ilhas da região.




Para além desses personagens principais, quase sempre presentes no grupo do jogador, outros indivíduos variados, geralmente em pares, serão escaláveis para a formação da equipe. As diferentes formações possuem vantagens e desvantagens, mas todas elas terão de ser usadas em algumas ocasiões. O balanço dessas formações está bem-feito no gameplay, e os personagens são mais interessantes que aqueles presentes no primeiro Voice of Cards exatamente pelo fato de estarem mais diretamente em sintonia com os capítulos da história e seu desfecho.

Ademais, como no título anterior, há o narrador, único “personagem” com voz (em inglês, interpretado por Mark Atherlay), em uma ótima performance interativa, cumprindo um papel de humor em alguns momentos, e principalmente fornecendo um complemento imaginativo para a cenografia simples.

Essa função descritiva, complementar à construção de cenário, lembra o narrador do filme Dogville (2003), de Lars von Trier. Acredito que essa fórmula narrativa ainda possa ser aperfeiçoada em um título posterior, pois é um estilo único, que possibilita muitas coisas mais em um design não-linear de roteiro, mas vale observar que já houve um maior aproveitamento desse elemento, se comparado a The Isle Dragon Roars.



Gameplay quase idêntico em vícios e virtudes, mas com uma exploração mais complexa e interativa

Na ocasião do lançamento de The Forsaken Maiden, Taro e sua equipe compararam o salto desse título em relação ao primeiro Voice of Cards com aquele que ocorreu no final da década de 1980 entre Dragon Quest II e Dragon Quest III. A comparação tem a ver com o fato de que DQ3I não mexeu nos gráficos do antecessor, mas expandiu incrivelmente as mecânicas, o design narrativo e o level design de exploração da série, tornando-se talvez o JRPG mais influente de todos os tempos.

Obviamente The Forsaken Maiden não tem e nem pretende ter a importância de um Dragon Quest III, mas a comparação é pertinente na medida em que, de fato, o estilo gráfico de The Forsaken Maiden é idêntico ao do primeiro Voice of Cards, e até mesmo várias cartas (de cenário, equipamentos e criaturas) são reaproveitadas. Por outro lado, ele expande e aperfeiçoa significativamente a narrativa e a exploração, mas sem mudar praticamente em nada a dinâmica de batalha.

Enquanto em DQ III o jogador passou a poder criar diferentes tipos de grupos com diferentes classes, tornando o gameplay mais versátil e complexo, The Forsaken Maiden continuou com seu combate em tabuleiro com típicos consumíveis e habilidades cujas variáveis de dano, efeitos colaterais e outras são mediadas por lances de dados, como em RPG de mesa. Algo assemelhado, inclusive em minimalismo, a Crimson Shroud (3DS), de um outro auteur de RPGs, Yasumi Matsuno.




A maior diferença entre os títulos de Voice of Cards de Taro fica por conta do uso de pedras que servem mais ou menos como “pontos mágicos” para se fazer ações, algumas custando mais que outras. O jogador receberá uma pedra por turno de personagem, podendo acumulá-las ao passar sua vez ou usar determinados itens e habilidades especiais.

Junto dessa dinâmica de combate, permaneceram seus vícios: esse continua a ser um sistema simples e típico, pouco desafiador e que não aproveita tanto as cartas enquanto artifício de gameplay. Adicionalmente, há o agravante de que o jogo permite muitos encontros aleatórios. O algoritmo utilizado possibilita até mesmo uma batalha após a outra, com deslocamento de uma única carta/célula. Um assunto que debati recentemente em um texto de game design para a SUPERJUMP.




Essa escolha arcaica de algoritmo (utilizada no primeiro Dragon Quest) tem uma transição de batalha coerente e faz um certo sentido pelo fato de exploração ter um foco em “desvirar cartas” (revelar cenário), sendo amenizada por ser fácil se deslocar literalmente saltando para onde quisermos nos locais já explorados (algo especialmente intuitivo de se usar pela tela de toque do Switch).

Contudo, especialmente em dungeons longas, esse algoritmo torna a aventura muito fatigante, desmotivando a exploração. O algoritmo também aumenta problematicamente os frequentes e repetitivos eventos aleatórios (que não de batalha), especialmente no mar.




De igual sorte, os vícios continuam os mesmos no minigame de cartas opcional (e com possibilidade de multiplayer). As modalidades dos joguinhos de baralho ofertados, baseados em formação de pares de cartas, continuam muito dependentes da sorte; além disso, algumas dessas modalidades resultam em partidas muito longas.

Onde o gameplay mais evoluiu, não resta dúvidas, foi na parte da exploração. Como dito anteriormente, isso se deve à exploração marítima que dá ao menos a impressão de a campanha não ter uma mera progressão linear. Em acréscimo, trata-se de uma exploração mais longa, com mais puzzles e mais interações no cenário, incluindo até momento de stealth, além de conter mais chefes, vários dos quais facilmente mais interessantes e imprevisíveis na trama, e um level design mais balanceado que se beneficia também do quanto o jogo avançou em termos de variedade e aproveitamento de cenários.



Cenografia mais rica e dinâmica geralmente acompanhada de músicas mais tristes

Assim como em seu antecessor, The Forsaken Maiden possui interface, design de personagens e cenários completamente estilizados e decorados com cartas. Menus, personagens e caixas de diálogo são enquadrados em forma estática de carta, enquanto os cenários de exploração são formados por cartas e desvelados pelo jogador enquanto desviram-se.

Contudo, diferente dos outros setores, em cenografia esse recurso de cartas é muito mais explorado do que em seu antecessor. Como já falou Pamela Howard (2002), em seu livro What is Scenography?:
“o cenógrafo libera visualmente o texto e a história por trás dele, criando um mundo em que os olhos veem o que os ouvidos não ouvem.”
Essa afirmação elucida exatamente o que acontece com The Forsaken Maiden em cenários simples e criativos, que se complementam com a imaginação do jogador e com as falas do narrador do jogo. Há momentos em preto-e-branco, trechos em que as cartas são ordenadas de forma mais irregular, no mundo paralelo, mais efeitos visuais de iluminação que estabelecem fortes contrastes em sintonia com a trama e até momentos em que as cartas são usadas para estampar frases em diferentes idiomas, como se estivessem a ecoar falas/sussurros onde o grupo está passando.




A trilha sonora, quase exclusivamente feita para música de fundo, possui uma qualidade comparável à do título anterior, embora tenha uma harmonia mais triste no geral, e algumas composições lentas e bem-embaladas para momentos relaxantes, bem como peças de batalha dramáticas com coro grave. Essa nova direção musical de Keiichi Okabe dá maior ênfase a piano, cordas e coro, afastando-se dos timbres de sopro e da harmonia mais alegre, dançante e de inspiração irlandesa que davam bastante personalidade ao primeiro Voice of Cards.

Em vez disso, a musicalidade de The Forsaken Maiden aproxima-se mais do estilo musical de NieR Replicant ver.1.22474487139… (Multi), mesmo que com incomparavelmente menor expressividade lírica, variedade de faixas, riqueza tímbrica e criatividade melódica. Contudo, dadas as devidas proporções do orçamento e da proposta de game design, o saldo da OST é positivo e a localização das peças de música de fundo é sempre apropriada para a trama e para a ambientação.



O Voice of Cards esperado para fãs da série NieR

Diferente de The Isle Dragon Roars, as escolhas artísticas e narrativas de Voice of Cards: The Forsaken Maiden fazem desse título uma recomendação muito mais fácil para fãs de Yoko Taro, especialmente da subsérie NieR.

Apesar de The Forsaken Maiden reaproveitar visualmente muita coisa do seu antecessor e evoluir pouco em combate, as composições são igualmente bem-feitas e coerentes com a nova proposta, e a exploração e principalmente o design de cenário e de narrativa são significativamente mais inventivos e refinados, entregando uma experiência única e acessível, recomendada também a fãs de RPGs de mesa e de JRPGs clássicos.

Prós

  • Composições adequadas e bem-feitas;
  • Game design coeso em vários níveis;
  • Design narrativo significativamente mais complexo e profundo;
  • O sistema de batalha continua bem funcional e coerente;
  • Boa adaptação para o modo portátil;
  • Exploração ampliada e level design aprimorado;
  • O design de cenários explora bem as possibilidades do estilo de direção de arte.

Contras

  • Batalhas pouco desafiadoras (com raras exceções);
  • Gameplay ainda pouco variado e pouco complexo;
  • O minigame continua com partidas demoradas e altamente dependentes da sorte;
  • Narrativa e mecanicamente, o design de cartas ainda está um pouco subutilizado;
  • Permanece  alta frequência difícil de evitar tanto de batalhas quanto de eventos randômicos repetitivos;
  • Muitos elementos visuais reaproveitados de forma pouco justificada do jogo anterior.
Voice of Cards: The Isle Dragon Roars — PC/Switch/PS4 — Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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