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Análise: Citizen Sleeper (Switch) oferece um mergulho profundo em um mundo sci-fi bem escrito

O título traz uma das melhores narrativas de ficção científica em jogos de forma geral.

Citizen Sleeper
é uma experiência narrativa desenvolvida pela Jump Over the Age e publicada pela Fellow Traveler com grande inspiração em RPGs de mesa. A parceria entre elas também foi responsável pelo título In Other Waters, um jogo narrativo de exploração subaquática em outro mundo também em um contexto de ficção científica.

Em Citizen Sleeper, temos agora um contexto mais facilmente associável a esse tipo de história: a vida em uma estação espacial em ruínas. Com ambientação crível e envolvente, a obra traz uma narrativa bem desenvolvida que definitivamente vale a pena para quem está à procura de um bom sci-fi.

O sonho de outra vida

Em um contexto futurista, a vida no espaço agora é uma realidade comum. A sociedade humana se desenvolveu para outros pontos do universo com grandes corporações impulsionando a busca pelo progresso a todo custo. Essas expedições ao espaço levam pessoas de todos os tipos em busca de suas ambições e sonhos.

Em Citizen Sleeper, você assume o papel de um sleeper, um robô que carrega dentro de si uma consciência digitalizada. Inicialmente, o seu personagem sente a desconexão entre corpo e mente de forma notável e, mesmo depois de se habituar, ainda acaba tendo que se perguntar sobre a sua própria existência. Afinal, ele é a pessoa de antes da digitalização, uma máquina que apenas carrega memórias e instruções baseadas nisso ou uma criatura totalmente nova?

Independentemente do que o jogador pense como solução, isso não é uma discussão nada trivial e é apenas um dos ganchos que movimentam a trama. Outro detalhe importante é o lugar em que esse personagem vai parar. Devido a certo incidente, você acorda entre destroços na proximidade de uma estação espacial chamada Erlin’s Eye.

Composta por vários grupos com intenções conflitantes, a estação é um lugar vibrante em que as pessoas se esforçam para sobreviver um dia (“ciclo”, na terminologia do jogo) de cada vez. A interação com elas é uma parte fundamental de uma discussão sobre valores e alianças que consegue não ser apenas um monólogo moralizante vazio e sim uma reflexão sobre assuntos profundamente pertinentes.

De modo geral, a história não apenas cumpre bem o seu papel em todos os níveis (construção de mundo, desenvolvimento de personagens, discussão temática), como também é, de fato, um dos melhores exemplos de sci-fi bem executado em jogos. Por um lado, a ambientação é bastante rica, conseguindo apresentar seus vários elementos de forma coerente. Por outro, todos os personagens são construídos de uma forma que não é apenas cativante, e sim algo crível, aumentando ainda mais o impacto dos eventos apresentados de forma madura e sensível.

O único ponto que senti que poderia ter sido um pouco melhor trabalhado é na interconexão das ações com o mundo em questão. Cada micronarrativa relacionada a um personagem é bem construída, mas algumas ramificações são pouco exploradas. Como se trata de um mundo particularmente denso e interconectado, é uma pena quando certos eventos não levam em consideração o impacto da resolução de outras histórias adjacentes, assim como a tendência do jogo à pouca diversidade das opções de diálogo. Porém, isso não significa que a obra não ofereça consequências, sendo elas mais relacionadas ao gerenciamento do tempo, que pode fechar certas linhas de história.

Um outro corpo

Em termos do gameplay, Citizen Sleeper é um título pautado pelo gerenciamento de tempo e ações. Cabe ao jogador explorar o Erlin’s Eye para conhecer mais a fundo o lugar, as pessoas que nele habitam, as possibilidades de emprego e até mesmo fontes básicas de sobrevivência como alimentação e reparos.

Uma grande dificuldade do corpo do sleeper é a sua obsolescência programada, ou seja, um prazo de validade que a fabricadora Essen-Arp estipulou e a única forma de superar essa barreira é através de um estabilizante produzido pela própria empresa. Com isso, ela teria garantia de contato constante durante a manutenção, sendo também capaz de rastrear o seu produto em qualquer lugar.

O corpo sintético do sleeper também precisa de comida e estar com fome é uma das formas de se aproximar da validade ainda mais rapidamente. Os ciclos vividos no Eye precisam levar em conta a busca por uma autossustentação de tal forma que o jogador possa se manter alimentado e em boa forma enquanto procura interagir com os personagens, realizando trabalhos variados.

Um elemento que impacta bastante a progressão do jogador é a escolha de build. É possível selecionar três classes (maquinista, operador, extrator), cada uma com tendência para habilidades específicas. Com os bônus atribuídos inicialmente, o extrator tem mais facilidade em trabalhos manuais, o operador, em interagir com interfaces e o maquinista, em engenharia. Porém, isso é apenas a condição inicial deles, sendo fácil subverter a lógica com os pontos obtidos ao resolver as missões (“drives”, na terminologia do jogo).

Mesmo assim, as habilidades iniciais fazem com que o extrator tenha uma vantagem na autossustentação por fazer fotossíntese, por exemplo. Já o maquinista coleta itens ao fazer tarefas de engenharia e o operador obtém dinheiro ao realizar demandas que envolvem interagir com interfaces tecnológicas. Junto com os benefícios para atributos diferentes, esses poderes moldam as opções ideais para o jogador ir construindo sua rotina própria aos poucos.

Vivendo um dia após o outro

Em termos da rotina, é necessário escolher uma série de ações para realizar durante cada ciclo. Algumas ações exigem itens (ex: vender resíduos) ou dinheiro (ex: comprar comida), mas a maioria delas envolve o uso de dados que seguem o formato mais comum, D6 (que possui seis lados). A cada novo ciclo, o jogador recebe mais e as faces já são indicadas no início do turno. A quantidade de dados obtidos varia de acordo com a condição do corpo do sleeper, sendo no máximo cinco.

Dependendo da face do dado, as ações terão probabilidades diferentes de dar certo, sendo preferível utilizar dados de maior valor usualmente. Ao fortalecer sua build, ações associadas àquele atributo receberão bônus nos dados, com um máximo de +2, ou seja, é possível ter garantia de 100% para resultado positivo com face 4 ou superior.

Porém, isso não significa que dados com face 1 ou 2 precisem ser ignorados. Eles são úteis especialmente na extração de informações da rede. Ao apertar X, o jogador se conecta a essa outra visão da estação espacial, tendo acesso a interfaces variadas tanto com a própria estação quanto com agentes dos grupos Havenage e Yatagan. Os últimos usualmente exigirão dados de face pequena, sendo uma forma bem útil de aproveitá-los.

Em termos das ações, vale destacar ainda que vários eventos dependem da passagem dos ciclos. Com isso, é comum ter que esperar um tempo para que certas ações sejam completadas enquanto são gerenciados outros elementos. Também é importante ficar de olho em todos os nós de ação para ver quais deles podem render novos drives. Por exemplo, comer cogumelos algumas vezes na lanchonete renderá uma missão e trabalhar em alguns lugares e ter efeitos negativos ou positivos podem oferecer não apenas dinheiro e outros bens materiais como também novas linhas curiosas de história.

Gostaria de destacar também os elementos audiovisuais, especialmente a trilha sonora. Trata-se de uma música ambiente que busca um trabalho de imersão que vai além de simplesmente se moldar aos eventos. Por um lado, há o uso de uma sonoridade mais robótica que ajuda a transmitir a sensação de estar vivendo em um futuro com altas implicações tecnológicas, enquanto os toques espaçados com elevamento esporádico do volume ajudam a dar uma sensação de vastidão do universo e pequenez individual com tendência ao isolamento reflexivo.

Isso não significa que o aspecto visual deixa a desejar, mas comparativamente é menos estimulante. Os ambientes são críveis, porém pouco chamativos, especialmente ao jogar no modo portátil, o que ajuda a valorizar o real foco da experiência: o texto. Contudo, o design de personagens também possui altíssima qualidade com ilustrações que, embora estáticas, são riquíssimas em detalhes e nuances de personalidade, contribuindo para a percepção do jogador para além dos elementos textuais.

Por fim, gostaria de salientar dois elementos levemente negativos específicos da versão de Switch. Primeiramente, não é possível usar a tela de toque. Apesar de não ser um problema, a experiência de clicar nos objetos e avançar as falas costuma ser facilitada por essa opção em outros jogos.

Além disso, a interface possui alguns elementos muito pequenos para o modo portátil. O jogo até possui uma forma de aumentar o texto, o que é bastante útil, mas outros elementos continuam em tamanho menor devido ao design. Não chegou a ser um problema para mim pessoalmente, mas imagino que alguns jogadores acabem preferindo jogá-lo em uma tela maior.

Uma ficção científica fascinante

Citizen Sleeper é uma obra de ficção científica sensível e bem escrita cujas discussões são profundamente relevantes. Trata-se de uma obra-prima que qualquer jogador interessado em uma boa história deveria experimentar.

Prós

  • Ambientação sci-fi bem escrita cujos vários elementos ajudam a enriquecer o panorama da trama;
  • Situações maduras e personagens críveis ajudam a criar eventos envolventes;
  • Discussões interessantes sobre conceitos filosóficos como liberdade, existência e agência pelos olhos de uma máquina com consciência emulada;
  • Trilha sonora bem empregada utilizando sonoridades mais robóticas para transmitir sensações de isolamento e vastidão do espaço dentro de um prisma futurista;
  • O sistema de builds valoriza a capacidade do jogador de explorar as peculiaridades das suas habilidades para criar seus ciclos de rotina dentro do gerenciamento de ações;
  • O sistema de dados é balanceado, colocando os valores pequenos demais na rede, enquanto os de valor superior são melhor empregados nas ações da superfície;
  • Apesar de estáticas, as ilustrações são detalhadas e cheias de personalidade.

Contras

  • Narrativa poderia explorar um pouco mais as interconexões das ações e as consequências de decisões específicas, especialmente em relação aos eixos de força do Erlin’s Eye;
  • Não permite a utilização da tela de toque;
  • Alguns elementos da interface podem ser pequenos no modo portátil.

Citizen Sleeper — Switch/PC/XBO/XSX — Nota: 9.5
Versão utilizada para análise: Switch

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Fellow Traveler


é formado em Comunicação Social pela UFMG e costumava trabalhar numa equipe de desenvolvimento de jogos. Obcecado por jogos japoneses, é raro que ele não tenha em mãos um videogame portátil, sua principal paixão desde a infância.
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