Game Music

NieR:Automata (Switch): a melancolia e a voz humana em uma ópera de máquinas e ruínas

Como a música de Keiichi Okabe contribui para a identidade da série NieR e o humanismo de NieR:Automata.


A trilha sonora de NieR:Automata The End of YoRHa Edition (Switch) teve direção musical de Keiichi Okabe, com composições suas e de outros compositores do estúdio musical por ele fundado, MONACA. As canções na “trilha sonora original” (OST) contam com excelentes vozes criteriosamente selecionadas para a proposta. Sendo uma das partes mais marcantes do jogo, a música foi premiada no NAVGTR, SXSW Gaming Awards e no The Game Awards 2017.


Na verdade, em todos os jogos NieR um dos maiores destaques está na trilha. Isso se deve sobretudo por sua proposta única como música de fundo, sua qualidade e sua profundidade. Por qualidade, quero dizer o quão bem-feita é em harmonia e execução para transmitir um sentimento desejado (nesse caso, sobretudo melancolia). E por profundidade, refiro-me ao quão bem usada ela é para dar significados ao seu mundo.

Como alguém que estudou piano clássico desde pequeno e que ama música, bem como NieR, estou feliz de compartilhar um pouco de minhas ponderações e de minha experiência em relação a essas canções. Lembro que analisei Automata, bem como fiz uma entrevista com YOKO TARO, Yosuke Saito e Keiichi Okabe. Esses materiais serão algumas das referências para esta matéria. As músicas da OST podem ser conferidas na playlist oficial de NieR: Automata, disponibilizada pela Square Enix Music via Spotify.

As vozes e as ruínas da humanidade

Diferente de NieR Replicant (Multi), a OST de NieR:Automata possui peças com sons sintéticos, uma escolha que reflete a característica tecnológica de seus personagens em uma história que se passa cerca de oito mil anos depois de Replicant e após o fim da humanidade. Outra escolha de direção musical que se coaduna com essa é a forma como algumas músicas possuem arranjos em chiptune e podem ficar mais abafadas ou distorcidas a depender dos danos sofridos pelo andróide controlado pelo jogador.

Semelhantes alterações ocorrem com os gráficos do jogo e também com a interface, cujo design foi concebido e liderado por Hisayoshi Kijima. Essas escolhas audiovisuais e de interface propiciam uma experiência imersiva ao jogador, como se fosse ele próprio um androide. Por outro lado, esses personagens são altamente humanizados em termos de cognição e sensibilidade, o que nos leva às canções da obra, com performances em diferentes idiomas de cantoras como Emi Evans (em francês), J'Nique Nicole (em inglês) e Marina Kawano (em japonês).
Emi Evans no NieR Music Concert de 2017.
Nosso maior interesse nesta matéria está nas músicas vocais da trilha sonora, as quais são as mais numerosas e destacadas na OST. Essas raramente são acompanhadas de timbres sintéticos, mas sim por sons naturais, sobretudo cordas, um pouco de percussão e piano.

A instrumentação não costuma ser muito cheia, de modo a dar mais espaço às vozes das cantoras. A sonoridade acústica e vocal se opõe à sintética, aproximando a experiência do jogador da natureza que encobre as ruínas da humanidade em oposição à tecnologia que compõe o corpo de seus androides.

Usar timbres acústicos para criar sintonia com a natureza não é algo novo, muitos jogos fazem isso, sendo um dos mais notáveis o caso da música ambiente de The Legend of Zelda: Breath of the Wild (Switch). Contudo, as músicas de Automata nesse contexto não são ambientais, mas sim músicas de fundo (background music). Isso significa que essas, diferentes daquelas de Breath of the Wild, não se misturam aos efeitos sonoros e são mais estáticas; são sobrepostas aos cenários, de modo que podem facilmente ser retiradas de contexto e ouvidas à parte.


Desse modo, durante a exploração em Automata, uma faixa muda quando o jogador pisa em outro cenário, ou durante mudanças de cena no roteiro. Esse conceito de música de fundo em Automata pode ser facilmente compreendido pelo aparelho de música (jukebox) que está no acampamento da resistência dos androides. No jogo, você pode usar essa máquina para mudar a música que você ouve, e então se sentar e apreciá-la com seus androides.

Essa possibilidade prova que uma música de fundo eventualmente pode existir internamente em uma ficção; os personagens podem “ouvi-la” ou até mesmo falar sobre ela, como é o caso em Replicant, onde duas personagens são musicistas (Devola e Popola). Por outro lado, a música ambiente não tem essa potencialidade, ela faz parte só da experiência do jogador.

A despeito de suas diferenças, há algo em comum entre a música ambiente e a música de fundo: é a intenção de ambas em transmitir sentimentos mundanos e a experiência sensível do personagem em sua jornada. Isso nos leva principalmente à harmonia e ao ritmo das composições, mas, antes disso, também à textura musical — algo que nem sempre é tão observado como se deveria em análise musical de jogos.

A textura das músicas de NieR: Automata

Em música, chamamos de “textura” a forma como o tempo, as linhas melódicas e a harmonia são combinados. Podemos analisar a textura de uma música em relação a fatores como densidade — ou “espessura” —, alcance relativo entre os tons mais baixos e mais altos, e o número de vozes, que seria, grosso modo, o número de “melodias independentes” dentro da música.

Uma textura é espessa quando contém muitas “camadas”. Uma dessas camadas pode ser uma seção de cordas, por exemplo, outra pode ser batuques de tambor, outra pode ser uma melodia cantada, e assim por diante. Entretanto, também podem existir diferentes camadas melódicas usando apenas um instrumento, caso ele permita muitas notas em simultâneo e grande alcance; é o caso dos arranjos oficiais para piano dessa OST.


No caso de Automata, suas canções costumam ter uma espessura leve. Elas frequentemente possuem apenas uma voz solo delicada e aguda cantando o tema, um suave suporte harmônico em cordas em tom menor, às vezes uma simples melodia secundária em piano, e um suporte rítmico de percussão grave, que é introduzido no decorrer da música.

Em alguns momentos, o foco vocal chega ao extremo de ter apenas a linha melódica da voz e nenhum outro instrumento ou melodia; uma textura que chamamos de monofônica. Essa escolha não é por acaso, ela relaxa ao mesmo tempo que destaca a voz e ressalta o aspecto triste de seus tons, uma ótima receita para criar intimidade com as emoções dos personagens ou para apreciar o ambiente do mundo.

Contudo, essa configuração é incomum para música de fundo durante a exploração, o que motivou uma de minhas perguntas a Keiichi Okabe. Na ocasião, o compositor me disse que a principal razão para esse design musical é a de dar identidade aos jogos NieR e ao seu mundo, razão pela qual isso também está presente em Replicant. Segundo o diretor musical, YOKO TARO (escritor e diretor) desde o início pediu que colocasse vozes de variadas formas, como canto, sussurros, algo como uma respiração e outras variações que povoassem o mundo do jogo.

Como comentei com Okabe-san, é interessante notar como essa escolha se mostrou muito oportuna em Automata, pois o enredo possui uma temática existencialista e humanista; conversei a respeito disso com YOKO-san na mesma entrevista. As vozes humanas presentes no jogo parecem algo como “o espírito deixado pela humanidade”, já que não restou nenhum humano naquele mundo, mas se preservou sua cultura em seus robôs.
Keiichi Okabe (compositor e diretor musical de NieR:Automata).
Um bom exemplo a esse respeito é “Birth of a Wish” (Become a God), com a voz das máquinas do próprio jogo em um momento de culto religioso. E outro exemplo é a música “Lalalala song” (Treasured Times), com vozes de crianças. Essa canção toca em uma vila pacífica de máquinas, muitas das quais lá chamadas de “crianças” por seu líder, Pascal.

Assim como nesta singela canção de “lálálás”, há algumas outras que fogem ao padrão de vocal solo. É o caso, por exemplo, de A Beautiful Song (confira um trecho abaixo in-game), com clara influência de Carmina Burana.

Em peças como essa, a textura é muito mais espessa. Além do coro, alternado com a voz de uma solista, há mais instrumentos, mais notas e um suporte de percussão e base bem mais intensos e persistentes para acompanhar a melodia principal.

Músicas com essas características de textura espessa acompanham o jogador durante lutas contra chefes para dar um clima de impacto bruto e poder. Contudo, ao mesmo tempo, continua com uma melodia triste, e às vezes também com uma letra lamentosa. Essa experiência musical prepara o jogador para uma tragédia, uma vez que os chefes nem sempre são “vilões”. O confronto dramático contra alguns deles é, às vezes, até angustiante, particularmente após o Final A, tanto em Automata quanto em Replicant.

A fórmula por trás das lágrimas

Vamos agora dar uma breve olhada nas partituras dessas músicas. O efeito de melancolia ou de um certo desespero não se dá apenas por escolhas de instrumentos e textura, mas também por conta do ritmo e da harmonia. A primeira coisa que precisamos notar é o tom. Quase invariavelmente estão em tom menor, como explica Okabe-san na entrevista:
"Como forma de se alinhar com o enredo de NieR e as emoções dos personagens, as músicas são compostas em um tom menor para infundir uma sensação de melancolia, em graus variados, em toda a música."
Além do tom, podemos entender essas composições em dois grandes grupos de canções: as de "som menor clássico" e as de "som menor suave". Essa divisão foi proposta e explicada em maior detalhe em uma análise musical feita pelo 8-bit Music Theory. Embora nem sempre seja assim, a tendência é que, nos jogos NieR, tal separação coincida com as texturas que apresentamos. O primeiro grupo de canções costuma ter texturas espessas; enquanto que o segundo, texturas mais leves.

Para entendermos essa divisão, precisamos entender que as composições musicais tradicionalmente são feitas de modo a passar certos sentimentos através do que chamamos de “harmonia funcional”. Isso nada mais é do que as formas de sequenciar as notas musicais (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si) dentro de escalas em um tom determinado para gerar um efeito no ouvinte.
Trecho da partitura de Weight of the World (versão para piano).
Se uma música está no tom de Dó, por exemplo, essa nota será a “tônica” (grau I) e causará um sentimento de estabilidade quando aparecer na melodia. Por contraste, a nota Sol (grau V) nessa composição terá uma função que chamamos “dominante”, e causará instabilidade. Ou seja, sempre que aparecer dará a impressão de que “não pode acabar ali”, ela “pede por algo”, é como se chamasse por algo que resolva a tensão que ensejou.

Pois bem… dentro deste contexto, um “som menor clássico” pode ser entendido como uma estratégia harmônica muito usada em músicas clássicas tristes. Basicamente, composições nesse estilo usam acordes dominantes de um tom menor que trazem um som maior que se resolve em um acorde menor na sequência. Além disso, muitas outras técnicas baseadas nessa são empregadas, como a adaptação dela para a segunda dominante na escala do tom menor, inversão e outras possibilidades, mas que não temos espaço aqui para detalhar.
Trecho de arranjo de A Beautiful Song com notações do 8-bit Music Theory.
Esse “som menor clássico” é mais presente em Replicant — como em Cold Steel Coffin —, enquanto que em Automata ele é mais raro. Entretanto, às vezes, como no trecho acima de A Beautiful Song, aparece misturado com o “som menor suave” de que vamos falar agora.

Esse segundo tipo de harmonia pode ser identificado por uma sucessão de notas na escala que não geram um contraste tão forte como aquele do som clássico. Desse modo, a experiência não traz algo tão trágico e gótico, mas sim algo mais suave, melancólico, homogêneo e pesaroso, proporcionando uma tristeza mais reflexiva e contemplativa. Um bom exemplo é Voice of no Return.

Uma última coisa que merece ao menos menção é a questão do ritmo. As canções com textura mais leve e com harmonia mais suave costumam ter um andamento lento ou moderado que dá ao jogador mais espaço para contemplar melancolicamente suas poucas notas, bem como apreciar a técnica das cantoras.
GIF de J'Nique Nicole no NieR:Orchestra Concert 12018 Blu-ray.
Em contraste, as músicas usadas em lutas contra chefes são mais espessas e ocasionalmente mais clássicas. A velocidade é moderada ou rápida, o ritmo é marcado de forma mais forte pelos instrumentos, e o jogador é atingido por uma adrenalina provocada pelo que chamamos de “antecipação”.

Antecipar basicamente se resume a colocar mais notas em uma melodia para literalmente “antecipar” as notas que estão vindo na sequência. Isso pode ser observado não só em batalhas contra chefes, mas também é frequente nos arranjos em estilo retrô durante gameplay de hackeamento (confira no vídeo abaixo).

Nesse caso de arranjo em chiptune, as músicas passam a proporcionar o que Nicolas Turcev, em seu livro The Strange Works of Taro Yoko (2018), chama de “melancolia retrô” (retro-melancholy). É uma experiência melancólica pela harmonia que descrevemos e pela sintonia com o tom do roteiro, mas com textura mais “áspera”, por conta das ondas quadradas e triangulares de som 8-bit.

Por hoje, terminamos por aqui. Dei um panorama sobre como funciona a OST da série NieR e principalmente a de Automata em termos de música de fundo, timbres, textura, harmonia e ritmo. Sou grato pela oportunidade de analisar Automata e de conversar com YOKO TARO, Yosuke Saito e Keiichi Okabe, que me ajudaram a pensar sobre este texto. O que achou da entrevista, das músicas do jogo e desta matéria? Podemos continuar esse papo nos comentários. Ah! E caso não tenha jogado NieR, faça esse favor para a glória da humanidade.
Revisão: Cristiane Amarante
Fontes: Entrevista sobre NieR:Automata (Nintendo Blast), 8-bit Music Theory (YouTube), “Texture” (Grove Music Online), The Strange Works of Taro Yoko (livro)

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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