Tactics Ogre Reborn (Switch): Por que esse clássico RPG tático não tem medo de ser desafiador

Entenda a proposta narrativa de Tactics Ogre Reborn, seu level design inspirado em xadrez e o porquê de ser progressivamente tão desafiador.

em 25/11/2022

RPGs táticos costumam ser temidos por aqueles que não estão habituados a jogos de turno que levam em conta muitas variáveis. Esse temor é natural, porque se você considera que há uma alta dificuldade intelectual em batalhas por turno com ações de um grupo de quatro ou cinco personagens, é claro que há mais fatores para se levar em conta quando a própria movimentação é de turnos e seu grupo pode facilmente ter dez unidades ou mais.


Entretanto, por mais que seja compreensível, essa percepção às vezes é enganosa, porque há RPGs tradicionais muito mais complexos do que alguns RPGs táticos (também chamados de TRPGs). Além disso, ultimamente vários TRPGs têm se esforçado para serem mais simples e acessíveis a novos jogadores. Os últimos Fire Emblem são exemplos disso. Além de tradicionalmente contarem apenas com cenários planos, há como retroceder turnos, permadeath opcional e diferentes modos de dificuldade. Atitudes semelhantes foram tomadas em Triangle Strategy, embora com uma topologia um pouco mais complexa, mas com uma customização mais simples que a de Fire Emblem.
Imagem de trailer de Fire Emblem Engage (Switch).
Na contramão dessa tendência, Tactics Ogre Reborn não trouxe opção de dificuldade e nenhum facilitador senão um maior incentivo ao uso do Chariot Tarot para retroceder turnos, um sistema que já havia na versão de PSP. Na verdade, em alguns sentidos, Tactics Ogre se tornou ainda mais desafiador, com um balanceamento cuidadoso, sem os furos da versão anterior, e com um level máximo (Level Cap) para o grupo, o que é chamado de Union Level. Um limitador de level que sobe conforme a narrativa progride, garantindo que o jogador não faça grinding excessivo. Além de que não se pode conseguir dinheiro em batalhas de treino (fora da campanha).

Claramente trata-se de uma decisão consciente e planejada de design, e é algo até mesmo esperado considerando outros trabalhos do criador desse jogo, Yasumi Matsuno. Contudo, essas escolhas dividiram os críticos. Alguns, como esse próprio que vos escreve, não viram nisso um grande problema, mas outros críticos julgaram uma escolha arcaica, pouco acessível ou simplesmente frustrante. Contudo, há razões para Tactics Ogre Reborn ser tão difícil, e hoje vamos entender o porquê.

Um público-alvo mais adulto e “hardcore”

Jogos são feitos para algum público-alvo, com uma faixa etária e um perfil aproximadamente definidos, mesmo que na prática seja possível que alguém diferente se interesse também. Em função do público, é comum algumas decisões específicas serem tomadas, como por exemplo a idade dos protagonistas, referências na obra, o tipo de design audiovisual escolhido, o estilo de escrita da trama, entre outros aspectos.

RPGs táticos costumam ser feitos para um público mais adulto, como foi o caso de Triangle Strategy, produzido e escrito por Tomoya Asano, e também foi o caso de Tactics Ogre desde sua versão original de 1995. Contudo, diferente dos jogos do Team Asano, as obras de Matsuno costumam ser feitas para um público mais "hardcore", procurando trazer uma dificuldade alta, mas justa. Há exceções de jogos mais fáceis, como Final Fantasy XII (Multi) e Crimson Shroud (3DS), mas jogos como Tactics Ogre e Vagrant Story (PS) são projetados para serem tão ou até mais difíceis que jogos como os Dark Souls de Hidetaka Miyazaki.

Ao contrário da série Final Fantasy e Metal Gear Solid, o Vagrant é voltado para jogadores hardcore. Provavelmente não é voltado para aqueles que tendem a pedir dicas e ler guias de estratégia. Isso não se refere apenas ao jogo em si, mas também ao cenário. Digo isso porque a história é contada de forma a permitir que os jogadores usem sua imaginação. não deve ser comprado com a expectativa de um Final Fantasy ou Metal Gear Solid. Estou afirmando isso porque o método de jogo e o vetor de satisfação são diferentes de outros jogos. Frutos do mar x pratos de carne, culinária francesa x culinária japonesa, futebol x beisebol, rock x jazz, Titanic x Projeto Bruxa de Blair. Os vetores são tão diferentes como nesses exemplos.” — Yasumi Matsuno
A princípio, fazer uma obra para um público mais restrito que esteja disposto a uma experiência mais desafiadora não é algo ruim em si. Na verdade, há vantagens e desvantagens. Talvez a principal desvantagem é que provavelmente isso limitará o orçamento do jogo, uma vez que dificilmente alcançará uma grande audiência, embora não seja impossível conquistá-la a longo prazo, como Miyazaki tem mostrado. Por outro lado, as vantagens são principalmente relativas à complexidade e/ou à profundidade de aspectos de design que precisariam ser simplificados se fossem direcionados a um público amplo.

Uma forma simples de entender isso é comparar com livros. Quando James Joyce escreveu seu livro Ulisses, ele não pretendia que fosse lido por qualquer um, mas sim por pessoas que dominassem bastante o inglês e já tivessem um bom repertório literário para que pudessem compreender suas referências e subversões modernistas. Se isso fosse adaptado para um grande público, certamente se perderia muito do estilo de escrita, talvez até o formato não linear de sua trama ou até mesmo a essência de sua proposta.
Cena de Vagrant Story (PS).
De forma semelhante, o level design e a complexidade das mecânicas de jogos como Tactics Ogre e Vagrant Story foram pensadas para um público que consiga lidar com algo desse tipo, além de compreender seu propósito. No caso de Vagrant Story, podemos ainda lembrar do fato de que a tradução oficial inglesa de Joseph Reeder e Alexander O. Smith (mesmos tradutores de Tactics Ogre Reborn) tem um inglês denso, político e shakespeariano um tanto difícil de se compreender para não iniciados, mas que no entanto combina com a seriedade e a profundidade da obra, bem como suas inspirações, como Alexander explica em entrevista. Não por acaso, tradicionalmente esses tradutores têm trabalhado nas obras de Matsuno, inclusive em contato com o autor.

Mas quais as vantagens para a proposta de Tactics Ogre Reborn em fazer um RPG tático tão restritivo (em termos de ausência de opção de dificuldade) e tão desafiador a longo prazo? Basicamente duas, que abordaremos nos tópicos seguintes. A primeira tem a ver com seu design narrativo; a segunda tem a ver com o seu level design e seu conceito de curva de aprendizado.

Experiência narrativa e game design

O que faz difícil de acompanhar uma história? Às vezes a dificuldade é intrínseca à própria narrativa, e pode ser percebida em um livro. Um dos livros mais difíceis da língua inglesa é Ulisses, de James Joyce — um equivalente aproximado disso na língua portuguesa é o Catatau, de Paulo Leminski. O que faz esses livros serem tão difíceis é o fato de que seus escritores inventaram centenas de palavras neles e usaram muitas expressões complexas.

Além disso, as tramas desses livros estão cheias de referências importantes de arte, literatura e filosofia. Por fim, a narrativa não é linear, o que dificulta a compreensão dos eventos. Claro, cada um desses autores tem suas razões para essas escolhas, mas o fato é que são pouco acessíveis devido à essência de suas propostas.




No caso dos videogames, coisas semelhantes podem acontecer, porém nessa mídia o ato de acompanhar uma história envolve outras variáveis para além das referências, do vocabulário, da construção das expressões e da estrutura da trama. Como notou Ian Bogost, em seu livro Unit Operations: An Approach to Videogame Criticism (2008), a própria interatividade dos sistemas do jogo faz parte dos significados atribuídos a ele; mecânicas e controles são “unidades” significativas tanto quanto palavras nas linhas de diálogo.

Por exemplo: o fato de vencermos uma batalha de Tactics Ogre Reborn derrotando o líder inimigo, mas não todo seu exército, tem um significado para a história, isso indica que a guerra não envolve simplesmente um massacre, mas sim uma luta de poder entre líderes políticos. Esse tipo de conexão da experiência de jogo com a experiência da trama faz parte da experiência dos jogos de Matsuno. Por consequência, a dificuldade também faz parte das histórias que eles têm para contar. Nesse sentido, há três fatores que podemos destacar na dificuldade de Tactics Ogre ligada ao seu design narrativo.


Primeiramente, o jogo faz com que sejam ameaçadores inimigos que o são pelo roteiro da trama. Isso não é próprio apenas de alguns jogos de Matsuno, mas também de trabalhos de Hidetaka Miyazaki. Chefes reconhecidamente poderosos costumam ser mais difíceis de serem derrotados. E em Tactics Ogre Reborn, o mais incomparavelmente difícil é o chefe final, não apenas por ser o último da campanha, mas porque ele é o único que possui um poder sobrenatural além do que os habitantes daquele mundo ficcional estão familiarizados.

Além disso, os próprios cenários podem ser grandes inimigos. Normalmente os cenários colocam o jogador em desvantagem, porque normalmente é ele que está invadindo um castelo ou uma fortificação, o que consequentemente coloca seu oponente em vantagem, do outro lado das muralhas, do outro lado de um rio ou em cima de torres.


Para isso tudo funcionar, no caso de Tactics Ogre Reborn, tomou-se a decisão de limitar o nível do grupo para cada instância da narrativa. Algo semelhante foi feito em Dark Souls II (embora esse tenha apenas uma participação indireta de Miyazaki). Nesse Souls, o jogador não pode fazer grinding à vontade; depois de um tempo, as criaturas não voltam a aparecer.

Por fim, vale salientar que a história determina momentos em que você pode contar com poucas unidades. Há em particular uma ocasião em que é literalmente um contra um. O level design de tal batalha precisa ser muito bem pensado para não ser fácil demais em um RPG tático. E fizeram um bom trabalho, você precisará calcular cada movimento seu e do adversário, e usar a classe e o elemento adequados contra ele.

Uma guerra, mas também um campeonato de xadrez

Segundo Hiroshi Minagawa (diretor de arte de Tactics Ogre e diretor geral de sua versão de PSP), o planejamento do jogo foi inspirado pela dinâmica dos jogos de xadrez. O conceito foi explorado originalmente no design de Yasumi Matsuno em várias camadas e pensado em conjunto com o design narrativo, também escrito por Matsuno. Podemos ver as influências do xadrez em vários níveis da proposta de gameplay de Tactics Ogre Reborn, as quais são parcialmente responsáveis pela alta dificuldade do jogo.

Primeiramente, ao jogar Tactics Ogre ou Final Fantasy Tactics, em qualquer uma de suas versões, você rapidamente perceberá que o campo de batalha é basicamente um tabuleiro pequeno, e não um grande campo, como é comum na série Fire Emblem. Por outro lado, a complexidade do cenário é compensada por sua verticalidade. A cenografia dos TRPGs de Matsuno sempre possui topologia; a altura do terreno em que uma unidade está pode interferir em precisão, dano e alcance de suas ações.


Além disso, há relativamente poucas unidades para usar (no máximo 12). Assim como em um jogo de xadrez, um tabuleiro pequeno faz com que as unidades ameacem umas às outras a cada turno, contribuindo para um jogo dinâmico e com repercussões diretas a curto prazo (um erro pode ser mortal).

Outro ponto importante a se observar é que, diferente de muitos TRPGs na década de 1990, tais como os das séries Fire Emblem, Shining Force e Langrisser, os cenários de Tactics Ogre não possuem balista, canhão ou qualquer outro objeto para usar em batalha. Assim como um jogo de Xadrez, o jogador conta apenas com as suas unidades, e confronta unicamente as unidades adversárias. Em se tratando de um RPG, as vantagens e as desvantagens de cada peça têm a ver com sua classe, elementos e outros status.


Por fim, também diferente da grande maioria dos RPGs táticos, as batalhas de Tactics Ogre, com raras exceções, são focadas em derrotar o líder adversário, e não todo seu exército. Nesse aspecto, algo semelhante a como no xadrez nós tentamos derrotar o rei adversário para vencer; não é preciso derrotar todas as suas outras peças.

Como se pode ver, todo o level design possui várias semelhanças com xadrez, mas nada disso funcionaria sem uma boa IA. Em um design desse tipo não faz sentido uma IA agressiva e cega. Por essa razão, a IA tem sido revisada; e as unidades, balanceadas. Em Tactics Ogre Reborn temos a melhor versão nesses dois aspectos. As unidades inimigas costumam ter níveis próximos aos do jogador, ou apenas um pouco superior, e são inteligentes para lidar com posicionamentos estratégicos no cenário.


Contudo, para que o jogo não seja imediatamente muito difícil, ele começa com inimigos mais fracos e cenários não muito hostis. O início do jogo não é tão difícil. Apesar da complexidade do sistema de batalha e de customização, não é requisitado que o jogador faça um uso cuidadoso dela. Porém, a longo prazo, a ideia é que o jogador vá se familiarizando com esses sistemas, e o jogo vai se tornando mais e mais difícil. O caso limite está no chefe final, em duas fases. Para vencê-lo é preciso dominar o sistema de classes do jogo e o sistema de elementos, além de calcular muito bem seus movimentos em combate.

Como em um campeonato de xadrez, é preciso garantir equidade entre as unidades dos participantes, e aí está outra justificativa para o Level Cap. Algumas variações são aceitáveis, como de classe, equipamentos e mesmo pequenas diferenças de nível, pois se trata também de um RPG, porém isso não pode levar a distorções que prejudiquem todo o cuidado que os designers tiveram para planejar a experiência do level design da partida.

Por essa perspectiva de curva de aprendizado, é natural esperar que a dificuldade do jogo esteja diretamente relacionada à complexidade inicial de seus sistemas e à quantidade de tempo para desenvolvê-los. Abaixo eu faço uma comparação entre dois jogos de Matsuno: Crimson Shroud e Vagrant Story:


Note que por essa filosofia de design não faz sentido diferenciar dificuldade “fácil”, “médio” ou “difícil”, pois a ideia é justamente que seja um vetor de aprendizado único, começando com algo que exija relativamente pouco do iniciante que ainda não conhece os sistemas, mas que vá aos poucos exigindo mais dele. A execução dessa filosofia somente é falha quando o vetor não é bem feito (quando há picos de dificuldade) ou quando não ensina bem o jogador sobre seus sistemas.
Conclusivamente, acredito que Tactics Ogre Reborn possui alguns poucos picos de dificuldade, mas ao menos parcialmente justificados por ameaças excepcionais que surgem no roteiro. De modo geral, em minha opinião, a execução do jogo é satisfatória dentro de seu design de curva de aprendizado, level design de xadrez e sua proposta de experiência de gameplay como artifício narrativo. Caso queira tirar suas próprias conclusões, recomendo jogar esse que bem ou mal continua a ser um dos melhores TRPGs de todos os tempos.
Revisão: Vitor Tibério
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Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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