Analógico

Tactics Ogre Reborn (Switch): Genocídio, etnicidade e realismo político

O que um dos roteiros mais sombrios de Yasumi Matsuno tem a nos ensinar sobre a prática do genocídio perpetuada até hoje.


O século passado foi um período sombrio que legou duras lições para a humanidade em termos de leis internacionais e teorias políticas, econômicas e filosóficas, o que gerou, entre outras coisas, a Organização das Nações Unidas (ONU), mas também foi inspirador para as artes, entre as quais está a recente mídia dos videogames. Desenvolvido e publicado pela então Quest Corporation (hoje parte da Square Enix) em 1995, Tactics Ogre: Let Us Cling Together (SFC) foi um dos jogos que mais capturaram a natureza fria e implacável das guerras do século XX.


Esse clássico recebeu um remake em 2011 e atualmente está disponível no Switch na versão remasterizada Tactics Ogre Reborn. Neste ensaio, evitarei spoilers, então, caso você ainda não tenha jogado essa joia da coroa dos RPGs táticos, saiba que procurarei me limitar a acontecimentos do prólogo e do capítulo primeiro. Fora isso há uma breve menção de um personagem que aparece posteriormente na trama.

"Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança." Essa frase foi dita pela filósofa Hannah Arendt durante os tempos sombrios da metade do século XX. Um triste século que sobreviveu a duas guerras mundiais, crises econômicas implacáveis e ideologias que provocaram extermínios em massa de populações de judeus, índios, chineses e diversas minorias; extermínios que só puderem ser descritos por uma nova palavra nos dicionários: "genocídio", cunhado em 1944 pelo jurista judeu Raphael Lemkin.
Foto de refugiados durante o genocídio de Ruanda, em 1994.
Yasumi Matsuno, diretor, designer e escritor de Tactics Ogre, projetou esse RPG tático de modo a comunicar não apenas a estratégia bélica, mas também a situação narrativa trágica em que os personagens se encontram para tomar decisões em um xadrez político em que o único vencedor é a caixa em que são depositadas as peças derrotadas. Para tal, Matsuno se inspirou em eventos reais como a queda do Muro de Berlim e os crimes de guerra nos confrontos da Síria, Azerbaijão e Armênia, as guerras iugoslavas e o genocídio de Ruanda.

Ainda hoje temos o que aprender com Tactics Ogre e a “Era dos Extremos”, como o historiador Eric Hobsbawm chamou o século XX, pois em pleno 2023 vemos tragédias em que etnias são vítimas de interesses econômicos e políticos, perecendo de forma desumana e covarde. O caso mais recente é o da Reserva Indígena Yanomami com mais de 30 mil habitantes, no norte do Brasil, onde têm sido identificadas centenas de mortes e milhares de indígenas em situação grave, vários dos quais desnutridos, doentes, vítimas de pneumonia, intoxicação por mercúrio e estupro, entre outros fatores devido a invasões às suas terras e à degradação de seu habitat.

Alta fantasia e realismo político

Desde livros como Senhor dos Anéis, de J. K. Tolkien, e As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, a alta fantasia está tradicionalmente ligada a um afastamento da realidade, pois ela, diferente da baixa fantasia (como Pinóquio, por exemplo), caracteriza-se por fundar um mundo fantástico completamente independente do mundo real. Uma alta fantasia estabelece leis naturais próprias para seu mundo, bem como uma história escrita do zero, uma geografia inventada e um conjunto arbitrário de raças, nações e criaturas.

Para um mundo de alta fantasia, basta que o cenário e o enredo sejam coerentes, coesos e eficientes para contar uma história determinada ou para dar os elementos necessários para que sua mensagem seja capturada pelos jogadores que o exploram. Contudo, como mostram as altas fantasias mais recentes, como As Crônicas do Gelo e do Fogo (ou Game of Thrones), de George R. R. Martin, é possível criar um ambiente político verossímil e analogamente “real” em uma alta fantasia que nos ensine sobre as guerras e suas questões morais, ideológicas e sociais de uma forma palpável e plausível.
"A verdade é tão difícil de dizer que às vezes precisa de ficção para torná-la plausível."
— Francis Bacon
De forma similar ao que acontece com as histórias de Martin, também os textos de Yasumi Matsuno conseguem não apenas criar mundos fantásticos bem organizados, mas também trazer diálogos verossímeis, temas sérios e acima de tudo uma atuação política realista. Como tratei em meu texto sobre política em RPGs, o “realismo político” é entendido em Ciência Política como uma forma de ver as relações políticas como relações de poder.
Yasumi Matsuno
Do ponto de vista do realismo político, um conjunto de nações está “em paz” quando há um equilíbrio de forças, ou seja, quando cada nação não entra em confronto com outra por temer altas perdas durante uma guerra, o que pode se traduzir em perda de recursos, vidas, território ou o próprio cargo político. Inversamente, quando há um desequilíbrio, a tendência é que o mais poderoso oprima direta ou indiretamente aquele que não pode revidar. Por fim, quando há “lacuna de poder”, como um território vago ou um trono vazio, automaticamente ocorre uma disputa por esse espaço ou pelo comando daquele povo.

Essa teoria, quando aplicada em uma fantasia com trama política, destrói completamente o clichê de bem vs. mal. Contudo, deve-se tomar cuidado para não transformar os personagens em políticos completamente frios, movidos por ambições de poder. Bons personagens nesse contexto, assim como na vida real, não são movidos apenas por isso, mas também por interesses pessoais (como proteger familiares e amigos) e ideais para si e para seu povo. A complexa equação dessas variáveis em cada personagem é o que dá vida a um xadrez político real e doloroso. Isso é o que faz Matsuno em Tactics Ogre.


No início, há uma harmonia no reino de Valeria. Com a notícia da morte do rei Golgare e a ausência de um sucessor para seu trono, imediatamente surge uma disputa política que escala para um conflito militar em vista de uma nova ordem política, tal como prevê a teoria do realismo político. Como não há mais um exército unificado obedecendo a um único comando, esse conflito desaba em uma guerra civil entre três forças políticas, as quais estão ligadas também à religião, dada a inspiração medieval da obra.

A maior porção do continente declarou independência enquanto Reino Galgastan, seguindo o Cardeal Barbatos. Porém vários nobres do antigo reino de Valeria juntam-se a um país vizinho, a região de Lodis, originando a facção Bakram-Valeria, liderada pelo bispo Branta Mown. Por fim, resta uma etnia perseguida e isolada em uma ilha do ducado de Walister, governada por Duke Ronwey.


De forma semelhante ao que acontece com o protagonismo de Vaan em Final Fantasy XII, Matsuno escolheu dar no início do jogo uma visão da história de baixo para cima, ou seja, a partir da periferia desse conflito, a área onde há maior opressão. No pequeno povoado da ilha de Walister, o jogador segue dois órfãos, Denam e Catiua Pavel, além de um amigo de infância, Vyce Bozeck. Esses e outros mais juntam-se à resistência contra a opressão dos Bakram e dos Gasgatani. Denam se juntou à Resistência depois que seu pai (Prancet Pavel) foi capturado em um ataque à sua cidade natal, Golyat.

Até esse ponto, pode parecer que essa resistência está do lado do “bem”. Mas as coisas não são tão simples como parecem. Ainda no primeiro capítulo, o jogador percebe isso quando é dada uma ordem a Denam para exterminar um povoado que se recusa a se unir à resistência liderada pelo duque. A culpa por esse massacre (The Massacre at Balmamusa) será colocada em cima do Reino de Gasgatan, o que será facilmente crível, dado o histórico opressor dos Gasgatani sob a etnia dessa região insular.


Nessa ocasião, o jogador pode tomar sua primeira decisão, ele pode escolher obedecer ou não à ordem do duque, mas de todo modo haverá consequências pesadas na narrativa, como romper seus laços com Vyce e com Catiua. A partir daqui, fica claro que essa história não é sobre um lado “certo” a seguir, mas sim sobre equilibrar seus ideais pessoais com consequências indesejáveis que suas decisões podem causar.

O impacto das decisões do jogador também podem ser sentidas em seu exército, pois há permadeath e personagens opcionais recrutáveis. No final é como uma destrutiva partida de xadrez, porém as variações das tramas mostram diferentes e interessantes perspectivas sobre a guerra.
"Há sangue em minhas mãos, quanto tempo até que esteja em meu coração?"
— Denam Pavel (Tactics Ogre Reborn)

Genocídio e conflito étnico

O realismo político de Tactics Ogre não é apenas uma escolha estética, mas uma ferramenta para suscitar no jogador uma reflexão sobre a guerra e suas repercussões em disputas étnicas internas e externas às nações envolvidas. É interessante notar que a variedade étnica no Reino de Valeria existia antes mesmo da deflagração da guerra civil. A guerra interna não criou de repente um conflito entre as etnias do país, pelo contrário, esse conflito já existia, porém não chegava às vias de fato, pois havia um poder central que bem ou mal apaziguava os preconceitos étnicos e as conspirações entre esses povos.

O antigo rei não foi capaz de extinguir a divergência interna entre as etnias de Valeria, embora sua figura centralizadora amenizasse as diferenças entre os povos dessas regiões. Assim, em sua ausência, as etnias mais favorecidas tiveram vantagem, seja por estarem em maioria (é o caso dos Gasgatani), seja por sua relação com a nobreza e sua influência com um país vizinho (é o caso da aliança Bakram-Valeria). Em ambos os fatores, a etnia da ilha do ducado de Walister estava desfavorecida, e soma-se ainda sua desvantagem geográfica: uma ilha sem nenhuma nação próxima para a qual pudesse pedir ajuda.


É interessante observar que a separação dessas etnias reconfigurou o mapa político e as novas forças em jogo após a ausência de um poder centralizador em Valeria. Contudo, isso não significa que essas forças políticas sejam “puras” em suas separações étnicas. Aqui está outro aspecto interessante no enredo de Tactics Ogre e que condiz com experiências históricas reais.

Como sabemos pela historiografia, os genocídio dos ameríndios, dos africanos e dos judeus causados pelos europeus ao longo da história contaram também com a ajuda de alguns índios, negros e judeus que se submeteram aos seus opressores para subjulgar sua própria nação. As escolhas que eles fizeram contra seus povos certamente não foram simples, envolvendo coerção, persuasão, identificação, alienação, pressão social e outros fatores.


Analogamente a esses casos históricos, também há personagens em Tactics Ogre que integram uma facção, mas são de outra etnia. O mais notável deles é Andoras Gaffryn, um personagem negro que integra uma facção de cavaleiros do Sacro-Império de Lodis, do papa Sardian, mas Andoras não é um Lodissian nativo, e sim um dos remanescentes da etnia Bolmoccan, do antigo Reino de Nidahme, conquistado por Lodis. Em determinada parte do jogo, quando o enfrentamos, ele afirma:
"Espere... Denam, ouça. Os Nidahme pereceram... Como essas ilhas, nosso povo... falhou em se juntar como um. É apenas... uma questão de tempo antes... [que] Lodis invada. Você deve fazer... Valéria... forte. Como uma rocha…”
— Andoras Gaffryn (Tactics Ogre Reborn)
De uma forma diferente, o duque da ilha, o ducado de Walister, pode ser visto como um exemplo de personagem tão obcecado por virar a guerra a seu favor que está disposto a sacrificar parte de seu próprio povo para isso, vide o mencionado massacre de Balmamusa. Também vemos personagens assim na história real. O que Matsuno parece querer mostrar, por todos os lados dessa trama, é como uma guerra com conflitos étnicos é algo que pode tomar proporções imprevistas e colocar-nos em um destino trágico não importa de que perspectiva olhemos.
Foto de 2018 de indígenas de uma aldeia Yanomami em frente à "Montanha do Vento".

O que podemos aprender com Tactics Ogre

Andoras deixa uma mensagem não apenas para Denam, mas também para o jogador: seu povo falhou em formar uma unidade coesa, e então foi derrotado pela nação de Lodis. Um país pode ter várias etnias, é natural que o tenha, e o Brasil e os Estados Unidos são excelentes exemplos, com numerosos descendentes de todas as partes do globo. Entretanto, em ambos os países há conflitos internos tácitos, os quais são mais ou menos controlados por instituições que concentram poderes. No caso de uma república, os poderes legislativo, jurídico e executivo.

Quando há uma ruptura interna com as instituições e o poder central de uma nação, as minorias étnicas e sociais ficam completamente desprotegidas e a tendência é que sejam exploradas, segregadas ou até mesmo exterminadas. Por outro lado, também é possível uma nação levar ao poder alguma figura manipuladora, capaz de provocar um massacre e ocultá-lo, como o Duke Ronwey, em Tactics Ogre, e então caberá ao jogador (ou a um cidadão na política real) decidir até que ponto ainda se deve segui-lo.

Vivemos ainda em tempos sombrios. Talvez não estejamos mais na Era dos Extremos, mas a política real é ainda dura como sempre em seu jogo de poder. Nesse tabuleiro, há ainda aqueles que se propõem a construir muros e sustentar ideologias que nos dividem perigosamente dentro de nossos próprios países e até mesmo aqueles que acabam por incitar, favorecer e ocultar tragédias como o massacre de Balmamusa ou como o que vemos acontecer com a população Yanomami. Em momentos como esses, tanto a história política real do século XX quanto a fantasia política realística de Tactics Ogre têm muito a nos ensinar.

Revisão: Diogo Mendes

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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