Dragon Quest IV (FC/NES): como contar uma história em JRPG sem focar em batalhas

O interessante protagonismo de Torneko no capítulo III do último Dragon Quest de nintendinho.


Não é novidade para ninguém que a franquia Dragon Quest, originalmente desenvolvida e publicada pela Enix, é a série de RPG mais importante do primeiro console da Nintendo e que deixou contribuições inestimáveis para esse gênero. Porém o que ainda impressiona é como todos os quatro foram inovadores e continuam influentes. O último desses, Dragon Quest IV: Chapters of the Chosen (FC) ou Dragon Warrior IV (NES), lançado em 1990 e depois portado para DS e Mobile, destaca-se por suas inovações em design narrativo e em gerenciamento de grupo.


Hoje vamos conversar sobre esses dois aspectos (design narrativo e gerenciamento de grupo) durante o capítulo III da história de Dragon Quest IV. Essa escolha não é por acaso: possivelmente o terceiro capítulo é o que mais notabiliza as inovações desse game. Sua originalidade foi tamanha que o protagonista do capítulo, Torneko, recebeu um spin-off para si, World of Dragon Warrior: Torneko: The Last Hope (PS), segundo título da série Mystery Dungeon, criada por Koichi Nakamura (diretor dos quatro Dragon Quest de NES), além de títulos posteriores lançados exclusivamente para Japão.

O papel de Torneko na trama de Dragon Quest IV

Tal como em todos os outros jogos principais da franquia, a história de Dragon Quest IV foi escrita por Yuji Horii e guarda semelhança com os demais em vários aspectos, especialmente de construção de mundo. Entretanto, esse quarto título da série possui o design narrativo mais único entre todos, pois não se trata de uma história unificada, e sim de cinco histórias relacionadas, cada qual com um capítulo e um protagonista próprio.

No terceiro capítulo, o jogador segue Torneko, da classe mercador (uma classe atípica em JRPGs até então). Como sugere sua profissão, esse personagem não é voltado para batalhas, mas sim para vender, comprar e negociar. É muito interessante como isso permite ao jogador ver o level design em um JRPG por outro ângulo: agora não guiamos um herói destemido que vai evoluindo à medida que enfrenta criaturas do mundo.


Torneko é um humilde comerciante que trabalha para um vendedor de armas na cidade de Lakanaba, e lá mora com sua esposa e um filho. O objetivo do capítulo é realizar o sonho de Torneko de montar seu próprio negócio. Para isso, o jogador precisará levá-lo para uma cidade próxima, Endor, onde ele obterá permissão para comprar um terreno e estabelecer sua lojinha. Depois de montar seus negócios por lá, ele pode transferir sua família para ajudar em sua loja em Endor.

Para que seu novo projeto prospere, Torneko resolve investir em armas lendárias, mas para encontrá-las ele precisa financiar a construção de uma passagem subterrânea que leva a um continente vizinho. Em boa parte do capítulo o jogador passará seu tempo juntando dinheiro para Torneko montar sua loja e depois para financiar essa construção e conseguir tesouros para negociar.

Uma aventura de JRPG sem foco em combate

Embora possa utilizar equipamentos e armas, Torneko é péssimo em batalhas, podendo morrer muito facilmente, porque possui baixa vida e atributos desvantajosos para resistência, defesa ou mesmo ataque. Além disso, ele não possui uma boa precisão em seus golpes e nenhuma aptidão mágica. Não faltam razões para que sua principal tática seja fugir até chegar à próxima cidade.

Isso pode ser desesperador, inicialmente, mas logo o jogador perceberá que o objetivo de Torneko não é ganhar experiência, mas sim dinheiro. O brilhantismo da proposta está, aliás, justamente na pluralidade de formas com as quais ele pode fazer grana no game. Uma opção é simplesmente vender itens em sua cidade de origem. Esse é um método demorado e você pode gastar horas ou dias para acumular o dinheiro suficiente para terminar o capítulo, mas é possível.


Outra alternativa é vender e comprar itens e equipamentos em uma cidade e vender em outra; há três cidades na região em que ele circula no capítulo terceiro. Você pode ter diferentes valores de compra e venda a depender do local e do produto, porém isso vai lhe custar tempo e aventuras que podem ser um pouco arriscadas, já que há criaturas nos caminhos que conectam essas cidades.

Contudo, você ainda pode acumular dinheiro em batalhas, se assim preferir. Para isso, pode ser conveniente contratar capangas. Sim, embora Torneko seja fraco nos combates, ele pode contratar até dois mercenários que o acompanharão temporariamente em suas aventuras. Acabado o tempo do contrato, eles lhe deixarão sozinho — é bom ficar atento a isso!


Talvez os fãs de Octopath Traveler já viram isso em algum lugar, não? Sim, os mercadores dessa série também possuem habilidades semelhantes. Esse é o caso de Partitio, em Octopath Traveler II (Switch), capaz de contratar mercenários e também negociar itens com quaisquer NPCs. Aqui está um bom exemplo de como Dragon Quest IV é influente até hoje. A diferença é que Partitio é um mercador que pode ser muito habilidoso em combate, enquanto que Torneko é mais coerente em sua profissão, sendo um comerciante vulnerável.

Diferente de Octopath Traveler II, seu foco nesse capítulo de Dragon Quest IV será menos nas ações de Torneko e mais na dos mercenários. Também vem bem a calhar a inovação de gerenciamento de grupo nesse game: um sistema que permite que você automatize as ações das suas unidades, ou seja, você pode pré-estabelecer o que os mercenários irão fazer quando um combate for iniciado.


Esse sistema de Dragon Quest IV mais tarde serviu de inspiração para o Gambit System de Final Fantasy XII (Switch). Nesse caso, a ideia ganhou forma em um modo muito mais complexo de customizar a IA para a ação dos demais membros da party em tempo real.

Diferente do convencional em JRPGs, é interessante que o level design do capítulo de Torneko é feito de tal forma a fazer com que o jogador procure tesouros. Essa é a forma mais eficiente para ganhar muito dinheiro a curto prazo. Para isso, claro, é preciso arrecadar um pouco de grana de outras formas, para então poder contratar mercenários para sua aventura. Entretanto, não pense que essas explorações serão apenas de combate, há também camadas de puzzle interessantes nas dungeons, mesmo que breves.


Outras formas de ganhar dinheiro direta ou indiretamente envolvem fazer favores, enviar recados e negociar (ou ser trapaceado — cuidado!). Eu acho legal também o fato de que no final é aberto um cassino na cidade de Endor, embaixo da hospedaria (Inn), e então também podemos ganhar (ou perder) dinheiro nas clássicas máquinas com jogos de azar.

Para quem não está familiarizado, vale destacar que o cassino foi introduzido pela primeira vez em Dragon Quest III e desde então está presente em todos os jogos da série. Entretanto, foi em Dragon Quest IV que passamos a disputar prêmios em forma de equipamentos especiais, o que faz todo sentido no contexto da lojinha de armas de Torneko.

Um convite para pensar a economia dos JRPGs

Uma das maiores contribuições de Dragon Quest IV para o mundo dos JRPGs é pavimentar o caminho para discussões sobre economia nesse tipo de jogo. Até hoje nós estamos acostumados a comprar e vender itens nesses jogos, mas dificilmente questionamos como funciona a economia nos mundos dos RPGs.

Alguns jogos ocidentais do gênero também trabalham de forma flexível a economia, e podemos lembrar de Fable, por exemplo. Contudo, continua sendo uma tendência o foco em combate, mesmo nos casos em que controlamos mercadores, como Partitio em Octopath Traveler II. Em alguns casos, isso pode ser anticlimático com o próprio contexto do modesto comerciante. Por isso, o exemplo de Torneko de Dragon Quest IV é interessante para pensarmos em outras possibilidades de gameplay em JRPG para além de combate e exploração tradicional.

Por fim, antes de fechar este artigo, vale salientar que esse jogo foi apenas um ponto de partida para pensar economia em jogos. Eu acho que além de utilizar isso como tema de gameplay e narrativa, também é preciso ver isso de forma crítica. Em Octopath Traveler II, por exemplo, esse tema foi abordado com um excesso de otimismo na jornada de Partitio para acabar com a pobreza e o desemprego. Esses temas merecem maior profundidade em JRPGs, e nesse aspecto ainda temos muito chão pela frente.

Revisão: Diogo Mendes

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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