Dia dos Namorados: precisamos conversar sobre relacionamentos gays em JRPG

Entenda por que precisamos de mais representatividade gay em JRPGs e o que podemos melhorar em termos de design narrativo e em escrita de personagem.

em 12/06/2023

Para quem costuma acompanhar meus textos, não deve ser novidade eu estar aqui para falar sobre RPGs mais uma vez. Por outro lado, poucos de vocês devem saber que também gosto de BLs (ou seja, VNs como Hashihime of the Old Book Town Append) e que frequentemente shippo garotos nos JRPG que jogo.

Pois bem, aproveitando a ocasião do Dia dos Namorados, como gay e também como um grande entusiasta da experiência e do design de RPGs, venho compartilhar o que penso sobre a baixa representação de personagens e casais gays em RPGs japoneses e sobre problemas de design narrativo relacionados a esse tema.

Assimetria da representatividade LGBTQ+ em WRPGs e JRPGs

Como sugere o título, o escopo de jogos desta matéria é JRPGs, mas isso não é uma escolha fortuita, de modo que convém começarmos por explicar o porquê desse segmento em RPG merecer uma reflexão à parte dos demais títulos do gênero. Já escrevi um tempo atrás sobre algumas diferenças importantes entre RPGs ocidentais e japoneses, com destaque para fatores de design narrativo, mas há uma razão específica para focarmos em JRPG: há uma menor representatividade gay nesse segmento do gênero RPG e problemas mais básicos que ainda precisam ser resolvidos.

Vamos começar pela questão da representatividade. No final da década de 1990 começamos a ver a orientação sexual como uma parte mais significativa na construção de mundo e na escrita de personagens em RPGs. Nesse contexto, devemos destacar os jogos da BioWare. Em Baldur's Gate II: Shadows of Amn, de 2000, o jogador controla um avatar que, no decorrer de sua jornada, pode desenvolver relacionamentos tanto com personagens do sexo oposto quanto com personagens do mesmo sexo. É esperado que tenhamos no aguardado Baldur's Gate III uma experiência ainda mais ampla de bissexualidade.


No decorrer dos anos, os RPGs para PC da BioWare consistemente aprimoraram a liberdade e a experiência da diversidade de orientação sexual em seus jogos, introduzindo mais opções de relacionamento em termos de personagens e raças, de roteiros mais elaborados e críveis para os romances e de temas como preconceito e tabu com relações LGBTQ+.

Esses avanços são visíveis na expansão de Baldur's Gate II de 2001 e sua edição de 2012, em Star Wars: Knights of the Old Republic, de 2003, e nas trilogias Mass Effect e Dragon Age.


Os RPGs dessa empresa até hoje são referências na representatividade LGBTQ+, mas estão longe de serem os únicos que incluem relacionamentos gays em seus mundos. Para citar mais alguns: vemos isso com frequência nas séries Fallout e The Elder Scrolls, em The Witcher III e em vários RPGs indies, como I Was a Teenage Exocolonist.

Seguindo tendências da contracultura, do modernismo, de movimentos identitários e de novas pesquisas científicas, vemos desde cedo uma preocupação mais proeminente de desenvolvedores de RPGs ocidentais na inclusão de representatividade LGBTQ+, e a crescente demanda por esse conteúdo na última década alimentou ainda mais esse movimento.


Por outro lado, os RPGs japoneses por muito tempo evitaram abordar relacionamentos não heterossexuais ou colocaram representações muito sutis, indiretas, cômicas ou meramente excêntricas de personagens LGBTQ+. Aliás, até hoje essas coisas ocorrem, embora em menor grau. Um exemplo é o casamento entre Vivi e Quina em Final Fantasy IX, que pode até passar despercebido aos jogadores. E podemos lembrar mais recentemente do estereótipo afeminado e espalhafatoso em Sylvando e sua trupe em Dragon Quest XI.

Talvez a série de JRPG que tradicionalmente mais se destacou no tema LGBTQ+ é Shin Megami Tensei: Persona, principalmente Persona 2, Persona 3 Portable e Persona 4. Nesses jogos, vemos algumas cenas seletas de insinuações homossexuais e, no caso do último exemplo, até mesmo uma reflexão explícita de orientação sexual e identidade de gênero. Por outro lado, até hoje nos jogos dessa franquia vemos piadas preconceituosas e estereótipos desnecessários que geram críticas na comunidade, principalmente em Persona 4 e Persona 5.


Nos últimos anos tivemos avanços (mesmo que tímidos) na inclusão de personagens e relacionamentos gays em JRPG. Final Fantasy XIV tem permitido que jogadores formem laços amorosos homossexuais online. Em NieR:Replicant, vimos Emil como um exemplo de personagem importante gay, o que foi confirmado por Yoko Taro desde 2011 (Grimoire NieR); sua orientação sexual era pouco clara na versão ocidental de 2010.

Podemos lembrar também que Fire Emblem: Fates, de 2015, introduziu a possibilidade de relacionamento homoafetivo em sua série, o que tem sido reiterado nos Fire Emblem subsequentes. Contudo, ainda há muito chão pela frente na representação gay em JRPGs.

O que é um bom personagem gay?

Para pensarmos sobre o que precisa melhorar na representação gay em JRPG, precisamos refletir sobre o que é, afinal, um “bom personagem gay”. Esse conceito pode levar ao equívoco de se pensar que há uma fórmula ideal para escrever um personagem gay. Definitivamente não há; bem como não há uma forma ideal de “ser gay” como pessoa. Entretanto, podemos analisar de dois ângulos diferentes o que significa escrever um “bom personagem gay”:
  • Um bom personagem que contingentemente (“por acaso”) é gay;
  • Alguém crivelmente gay que contingentemente é ficcional.
Vamos começar pelo primeiro ponto de vista. Alguns autores e críticos sustentam que um bom personagem gay é simplesmente um bom personagem que calha de ser gay. Um exemplo de autor a seguir essa linha é Yoko Taro (diretor/escritor da série Drakengard/NieR):
“Como você definiria “incomum”, [essa] é a questão. Se olharmos ao redor, podemos definitivamente ver homossexuais, embora sejam poucos. Não estou tentando dizer “não discrimine” ou algo assim, apenas “existem pessoas assim; é simplesmente a maneira como o mundo funciona”. Eles são rotulados como “normais”, “incomuns” e comparados com bastante frequência, mas a diferença entre pessoas com certas preferências sexuais reside puramente no número. Alguns são bastante abundantes, outros não, mas estamos todos no mesmo mundo. Eu nunca pretendi que eles parecessem tão especiais.”
Essa é uma perspectiva interessante que condiz com a ideia de que uma pessoa gay real não necessariamente tem um comportamento diferenciado pelo simples fato de ser gay. Um homem gay, por exemplo, não necessariamente é mais feminino ou mais vaidoso, embora estereótipos possam reforçar essas e outras características e influenciar a comunidade.


Essa estratégia para escrita de personagem parece particularmente promissora em jogos que não estão abordando romance ou questões de orientação sexual. Nesse caso, o roteirista pode se focar simplesmente em fazer um bom personagem em seu papel na trama, como sendo um herói, um anti-herói, um vilão, entre outras possibilidades.

Seguindo esse modelo, eventualmente os personagens ficcionais podem manifestar desejos amorosos, pois de outra forma pode ser estranho no caso de jornadas longas em mundo aberto. Nessas ocasiões, a depender do número de personagens no mundo, é esperado que ao menos algum deles possa ser visto como gay.

O já mencionado Emil é um caso desse. Ele claramente é um excelente personagem, até mesmo o favorito de muitos fãs do jogo, e só secundariamente é insinuado como gay, assim como acontece com os personagens héteros, pois o foco da trama não é de um romance.


Por outro lado, há autores e críticos que sustentam que um bom personagem gay implica, antes de tudo, em ser alguém crivelmente gay. A ficção (às vezes até mais do que a realidade) busca a verossimilhança como uma forma de dar concretude aos seus personagens. Tornar personagens mais “naturais” faz com que possamos mais facilmente nos conectar a eles e levar mais a sério seus papéis e suas preocupações na história. Seguindo essa tendência na literatura, Ernest Hemingway até mesmo não gostava de considerar seus personagens como “personagens” propriamente, mas sim como “pessoas”.
“Escrevendo um romance, um escritor deveria criar pessoas vivas, não personagens. Uma personagem é uma caricatura. Se um escritor pode fazer pessoas viverem, poderá não haver grandes personagens no seu livro, mas é possível que o seu livro perdure como um todo, como uma entidade, como um romance.”

A questão agora passa a ser: “o que é um gay crível?”. Essa é uma pergunta difícil para se começar a escrita de um personagem, mas não se engane, também é igualmente difícil começar por “como um herói deve agir sem ser caricato?” ou “como deve ser um vilão com motivações críveis?” A verdade é que pensar papéis para além das caricaturas fáceis não é algo simples e invariavelmente demanda do escritor uma observação atenta do comportamento das pessoas no mundo real.

Para além dos estereótipos, é difícil descrever com precisão o que é naturalmente “parecer gay”, mas posso garantir que essa aparência é notada, principalmente por outros gays. Quando falo de “aparência”, refiro-me não apenas à estética, mas também ao comportamento, à forma de falar e até mesmo preferências e desejos. Há uma soma de fatores probabilísticos que formam o que popularmente chamamos de “gaydar” (“radar gay”). Esse mecanismo também funciona ao interagirmos com personagens ficcionais, mesmo que não fique explícito se são héteros ou não.


Esse tipo de preocupação primária na escrita de um personagem é particularmente importante quando há um foco significativo em um relacionamento amoroso genuíno. Nesses casos, não basta ser um “bom personagem que por acaso é gay”, pois ele está inserido em uma relação amorosa que ocupa uma parte dedicada no enredo, então é preciso que sua aparência (sobretudo em comportamentos e palavras) transpareça o que ele sente e pensa. Só assim será possível cumprir bem seu papel nessas ocasiões.

Pela minha experiência, é raro encontrar bons personagens gays desse modo verossímil, e mais ainda em jogos japoneses e animes. Quando se busca comunicar de forma fácil essa “aparência gay” para um grande público (ou para garotas que gostam de BL), frequentemente os escritores se limitam a replicar estereótipos gays em personagens que são ou diretos demais ou acentuadamente fofos, afeminados, elegantes ou espalhafatosos.

Problemas de role-playing e roteiro com casais gays

Contudo, os problemas de representatividade gay em JRPGs não estão só na escrita de personagem, mas também no roteiro e na construção de mundo. O problema começa na ausência: são poucos os JRPGs com elementos de simulação que permitem relacionamentos homoafetivos (sendo Fire Emblem um desses poucos); e são ainda mais raros os JRPGs em que vemos o desenvolvimento mínimo de um casal gay.

Precisamos considerar que diferente dos WRPGs, grande parte dos RPGs japoneses não dá tanta liberdade para o jogador ter uma experiência de “avatar”, isso explica em parte a falta de liberdade nos relacionamentos. Entretanto, há séries importantes de JRPG que simulam relacionamentos com NPCs e que ainda não costumam permitir relacionamentos homoafetivos, como a já mencionada série Persona. Em contraste, ao menos em Final Fantasy XIV Online podemos ter casamento gay entre jogadores.


Em todo caso, mesmo quando é permitida a experiência de role-playing em relacionamento homoafetivo, há pelo menos dois problemas básicos que ainda precisam ser enfrentados. Primeiramente, a falta de opção. Por exemplo: em Persona 3 Portable há apenas possibilidade de relacionamento lésbico; e em Fire Emblem: Three Houses apenas três relacionamentos homossexuais masculinos possíveis(sem contar a DLC).

Além disso, esses contextos de simulação frequentemente levam em conta apenas heterossexuais e bissexuais. É como se personagens homossexuais não existissem. Tão importante quanto incluir diferentes possibilidades de relacionamento com personagens do mesmo sexo deve ser a preocupação em mostrar diversidade de orientações sexuais no game, acrescentando assim mais personalidade e identidade aos personagens e simulando de forma mais realística a busca por um par amoroso.


Por fim, cabem algumas palavras sobre problemas de roteiro. Em RPGs com simulação de relacionamento como algo secundário ou até mesmo completamente opcional, é compreensível que não tenhamos um desenvolvimento aprofundado no laço amoroso entre os personagens. No entanto, continua sendo fundamental que essas relações ao menos sejam convincentes e engajantes. Costumam ser muito simplórias essas relações, às vezes até mesmo são reduzidas ao mero apelo de relacionar os dois personagens em vez de ter algum porquê de estarem juntos.

Infelizmente esses relacionamentos gays atualmente são quase que os únicos em JRPG. A maior parte dos RPGs japoneses possuem histórias lineares com alguns desenvolvimentos românticos laterais entre personagens principais ou secundários, mas é extremamente raro ver algum relacionamento gay nesses casos; quando há, são excessivamente sutis e ambíguos. Peguemos a série Final Fantasy como exemplo. Temos vários romances ou pelo menos interesses amorosos explícitos em praticamente todos os jogos dessa série, mas sempre são relações puramente heterossexuais.


Às vezes é curioso esse cenário em JRPGs, pois possuem muitos garotos facilmente “shippáveis”. Não faltam ocasiões em que a linha entre amizade e amor pode ser ultrapassada pela sugestão e pela imaginação dos jogadores, e eu mesmo me incluo entre esses. 

Digo mais: muitas duplas de “bons amigos” em JRPG possuem uma química melhor para um casal do que muitos casos explícitos de relacionamento heterossexual in-game. Isso prova que muitos RPGs japoneses já têm o carisma necessário para a construção de casais gays, agora é hora de incluí-los dentro de suas histórias.

Revisão: Cristiane Amarante

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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