Discussão

Crise de semicondutores: real ou estratégia de vendas?

Empresas como a Nintendo têm comentado frequentemente sobre as dificuldades com seus estoques.

Recentemente, o presidente da Nintendo, Shuntaro Furukawa, alertou que terá dificuldades em suprir a demanda por Switch em 2022. Esta é uma preocupação que a empresa declarou constantemente ao longo do ano de 2021, ao mesmo tempo em que o console bate recorde de vendas de forma ininterrupta, tornando-se um dos mais vendidos da história.


O contraste entre esses dois fatos pode gerar alguns questionamentos: se há problemas no estoque, como as vendas estão tão altas? Uma empresa do porte da Big N realmente deixaria faltar peças para produzir suas mercadorias? O passado recente com Super Mario 3D All-Stars, edições especiais de Game & Watch e outros produtos também não contribui. Estaria a Nintendo novamente aplicando a estratégia fomo, simulando uma suposta escassez como estratégia de marketing para estimular o consumo desenfreado?

Por curiosidade, resolvi dar uma pesquisada descompromissada nas vezes em que nós aqui no Nintendo Blast noticiamos essa dificuldade da empresa em atender a demanda. Para minha surpresa, me deparei com uma notícia de 2017, com o Switch recém-lançado e muito antes, portanto, de sequer sonharmos em passar por uma pandemia global que afetaria a produção das mais diversas mercadorias.

Uma palavra que apareceu em todas as notícias foi semicondutores. Desse modo, ela é crucial para entender essa questão e desatar os nós da compreensão. Acompanhe-nos no desenrolar deste novelo para saber se a crise é real ou uma elaborada estratégia de lucros da Nintendo.

O que são semicondutores?


De modo bem simplificado, os semicondutores são uma classe de materiais capazes de conduzir correntes elétricas. Por essa propriedade, tornaram-se a matéria-prima para a produção de chips usados nos mais diversos aparelhos eletrônicos, incluindo, é claro, o nosso Switch.

Aliada a essa capacidade de conduzir as correntes sem sofrer uma sobrecarga, outra característica importante desse componente é a leveza do material. Rogério Nunes, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores (Abisemi), explica que:
“Chips são, na verdade, uma pastilha de silício, um pequeno pedaço de silício que, na verdade, é um produto enriquecido a partir da areia. Com esse item semicondutor, nós fazemos a construção de um circuito elétrico, o circuito integrado. E finalmente encapsulamos esse circuito integrado para que ele possa ser usado nas placas eletrônicas”.
Esse material, portanto, é primordial para a cadeia produtiva de todos os produtos que utilizam tecnologia eletrônica. Hoje, está presente em mercadorias como televisores, celulares, computadores e videogames, mas também em setores menos óbvios, como o automotivo, o agrobusiness e a área médica.

Tem, mas acabou


O filme Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up), produção da Netflix que figura entre as mais comentadas no final de 2021, provavelmente teve seu roteiro escrito antes da pandemia, considerando o tempo que usualmente se leva para produzir um longa-metragem. Ainda assim (sem spoilers), em determinado ponto a escassez de componentes para os produtos eletrônicos é citada por um dos personagens.

Esse é apenas um exemplo de que essa situação não começou com a COVID-19. Com os aparelhos eletrônicos cada vez mais presentes em nosso cotidiano, desde smartphones e painéis solares à geladeira e aos aviões, a demanda por semicondutores tornou-se algo bilionário. E esbarra em complicadas questões geopolíticas. Renan Pieri, economista da Escola de Administração de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), aponta que:
“Temos uma excessiva concentração de manufatura desses produtos semicondutores na Ásia. Por exemplo, um país como Taiwan produz 43% de todo o disco de silício do mundo. A Coreia tem outros 21%”.
E Taiwan é uma nação em certa medida considerada um território da China, país que disputa a hegemonia econômica mundial com os Estados Unidos. Com o aumento do consumo levando a um possível esgotamento da capacidade de produção, a China prefere suprir seu próprio mercado a atender aos interesses ocidentais. Não à toa, os estadunidenses e os europeus começaram a lançar incentivos para atrair manufatura para os seus territórios.

Quando se usa a palavra escassez, pode dar a impressão de que as minas de onde se extraem o silício se exauriram e não é mais possível obter o material. Não é bem assim. Como espero ter explicitado, o uso de semicondutores em quase todos os produtos que utilizamos hoje gerou uma demanda que os produtores não tinham mais estrutura para atender. E essa falta de estrutura possibilitou o colapso que se vê desde que um microscópico vírus entrou em nossas vidas.

O empurrãozinho para a crise


Com a pandemia do coronavírus e o distanciamento social se tornando uma importante medida de proteção, popularizou-se a prática do home office e do ensino à distância. Furukawa comentou como Animal Crossing: New Horizons e suas mais de 30 milhões de cópias foram fundamentais para o desempenho que a Nintendo teve em 2020 em meio a esse contexto. O consumo de produtos eletrônicos cresceu exponencialmente com as pessoas em casa, ao mesmo tempo em que a produção sofreu diversas paralisações por causa da necessidade de se realizar lockdowns.

Empresas como a Huawei e a Toyota decidiram estocar componentes para proteger sua produção. No Brasil, o governo fechou o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), estatal criada em 2008 que ficava em Porto Alegre e era a única fábrica de semicondutores do hemisfério sul. Para fugir da dependência do fornecimento asiático, a Intel anunciou a criação de uma nova unidade de negócios com foco na produção de componentes.

Porém, como explica Felipe Catharino, sócio-diretor da KPMG no Brasil, a construção de uma fábrica de semicondutores pode levar até cinco anos, pois “é um ramo com grande barreira de entrada e curva de aprendizado muito longa”. Quem optar por tentar obter o material no mercado, nesse contexto de produção reduzida, continuará enfrentando dificuldades. Ele enfatiza:
“A indústria de semicondutores não se planeja em semanas, mas sim em anos. Para uma empresa pegar um slot de componentes, precisa se planejar”.
A indústria automobilística é exemplo de como a situação é complicada. Hoje, um carro do tipo SUV de médio porte possui cerca de 300 chips. O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Carlos Moraes, constata os efeitos da falta de componentes: “Fala-se entre 5 milhões e 7,5 milhões de carros não produzidos em 2021 no mundo”. A escassez do material, portanto, é real e passa longe de estar impulsionando os lucros das empresas.

E o que o futuro nos reserva?

Com o avanço da vacinação e a retomada das atividades, a produção de componentes já recupera seu ritmo. No entanto, a diferença entre o consumo de tecnologia e a capacidade de fabricação de semicondutores continuará aumentando sem uma mudança em como o mercado está estruturado.

A tendência para os próximos anos é que se inicie a popularização da tecnologia 5G, o que fará a demanda por chips crescer. Não só isso, pode aumentar a concentração do mercado de semicondutores no setor de computadores e smartphones, que juntos representam mais de 60% da receita.

As fábricas precisam se estabelecer em mais locais para aumentar a oferta. Mas independente disso, o setor de videogames representa uma fatia muito pequena deste mercado e não será exatamente a prioridade na hora de receber os componentes. Por isso, por mais que haja procura pelo PS5, Xbox Series e pelo Switch, o alerta de Furukawa faz todo sentido: suprir essa demanda será um desafio que ainda deve perdurar ao longo deste ano.

Para saber mais: Tilt, CNN, Época, Agência Brasil, Exame

Revisão: Cristiane Amarante

Nascido no mesmo dia que Manoel Bandeira (mas com alguns anos de distância), perdido em Angra dos Reis (dos pobres e dos bobos da corte também), sob a influência da MPB, do rock e de coisas esquisitas como a Björk. Professor de história, acostumado a estar à margem de tudo e de todos por ser fora de moda. Gamer velho de guerra, comecei no Atari e até hoje não largo os mascotes - antes rivais - Mario e Sonic.
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