Analógico

The World Ends with You e as referências culturais na sintonia de game design da série

O encontro entre as culturas de rua japonesa e norte-americana em um exemplar título de coerência de game design.




Como explicado ao final da análise de NEO: The World Ends with You (Switch/PS4) — doravante “NEO” —, mencionando na ocasião também seu antecessor, The World Ends with You (DS) — doravante “TWEWY” —, essa duologia possui um design de “sintonia” no sentido musical e metafórico da palavra, ou seja, jogos cujos elementos acompanham um “tom” em comum, cujas escolhas de design orbitam ao redor de um conceito central e são altamente coerentes entre si.

Essa afirmação, que na ocasião da análise valeu para NEO, vale na verdade para a série The World Ends with You em geral até aqui, e nesta matéria explicarei o porquê. Mais especificamente, explicarei (sem spoilers) o conceito central da série e, ordenadamente, abordarei a coerência dos desenvolvedores nas escolhas de construção de mundo (world design ou world building), design narrativo e level design.


Um conceito de simulação fantástica

A ideia básica para a concepção da franquia The World Ends with You está fora de seus jogos. Não, não estou falando de sua série de anime de 12 episódios, mas do mundo real, mais especificamente alguns bairros da cidade de Tóquio. Porém, isso vale não apenas para sua urbanização e estilo arquitetônico, mas também para a cultura popular e juvenil que lhe dá a vitalidade pela qual a cidade tornou-se conhecida dentro e fora do Japão.

A ideia da franquia não é apenas simular as ruas de Tóquio e a rotina de seus habitantes, mas também, de algum modo, imaginá-la dentro do mundo dos mangás — especialmente de shounen — e imersa em conflitos de gangues e músicas de pop, rock e hip-hop que fazem parte significativa do imaginário e da expressão da cultura jovem local. Desse modo, cabe à direção de cada título projetar mundo, narrativa e level design de forma analógica com aquela expressão visual, narrativa e sonora da região no respectivo tempo de sua produção.

A primeira tentativa da Square Enix de implementar esse conceito foi em 2007, em TWEWY, de DS, em parceria com a Jupiter, empresa com a qual havia desenvolvido em 2004 Kingdom Hearts: Chain of Memories (GBA/PS2), que também influenciou TWEWY. A execução desse título foi revista em alguns pontos na versão Final Remix de 2018 para Switch. E, por fim, uma segunda forma de implementar o conceito surgiu em 2021 com NEO, dessa vez em parceria com a h.a.n.d. No trailer abaixo é feita uma breve comparação de locais reais com cenários do último título da série.

O mesmo mundo em épocas diferentes

Todos os títulos da série têm em comum o design arquitetônico e urbano da região de Tóquio, que começa apresentando o protagonista diante de um cruzamento de ruas largas circundadas por prédios retos, esguios e altos e abraçados por vielas estreitas com estações de ônibus, grafites nas paredes e lojas de roupa de estilo diverso, cafeterias e lanchonetes como se vê em Bus Station, Cat Street e outros cenários nos jogos da série.

Do ponto de vista do design de moda, a franquia até agora tem optado por salientar um contraste entre o estilo monótono e formal cotidiano dos adultos da região, que aparecem em personagens anônimos e sem rosto que andam pelas ruas, e o estilo heterogêneo e descolado dos jovens que exercem papéis importantes nos jogos.




O estilo juvenil abrange ainda cabelos coloridos e com corte geralmente repicado e arrepiado e terminado em franjas, ou guardados em gorros ou boinas. A roupa acompanha o design diferenciado com botas ou calçados grandes e arredondados, calções largos, camisetas e jaquetas com cortes irregulares ou personalizados, além de vários apetrechos, entre os quais, claro, os Pins, que possuem função importante no sistema de combate.

Em todos esses aspectos, porém, são notáveis algumas alterações que refletem mudanças do estilo da cultura popular da região que separa a Tóquio de NEO da sua antecessora de 14 anos atrás. Os celulares flip, por exemplo, que eram muito populares em Tóquio, hoje já são cada vez mais incomuns, e essa mudança foi feita antes de NEO, na versão Final Remix de TWEWY e na sua série de anime.

Outra diferença notável é a aparência dos novos personagens. Alguns garotos, por exemplo, possuem cabelo raspado nas laterais, o que era um estilo pouco comum 14 anos atrás, e a máscara do protagonista alude ao período de pandemia que marcou o desenvolvimento de NEO no Japão desde meados do fim de 2019 e início de 2020. Em contraste, no título anterior havia elementos mais presentes na cultura popular daquele tempo, como o headset e o MP3 do protagonista, Neku.



Uma história contada com música e páginas de mangá

Algo que está sempre presente na série The World Ends with You é a música. No título de DS, temos principalmente pop, mas em NEO há também muito rock e hip-hop. Salvo raros momentos, alguma música toca constantemente não só durante as batalhas, mas também em meio aos passeios na cidade e mesmo, ao fundo, durante os diálogos, como se o protagonista estivesse sempre com um fone no ouvido.

E quase tão presente quanto a música estão as palavras em balões de pensamento dos personagens, aqueles tipicamente encontrados em diálogos de mangá e histórias em quadrinhos de modo geral. E, falando em quadros, os diálogos dos personagens, tanto de forma dinâmica (quando se passeia pelas ruas) quanto aqueles presentes nas cenas principais dos jogos, são sempre apresentados com imagens estáticas estilizadas dos personagens à moda dos mangás, em recortes em meio ao movimento dinâmico do jogo.




Tal característica de estilo estático de storytelling foi aprimorada em NEO, e as cinemáticas com uma direção mais comum são bastante raras, praticamente apenas no início e no fim da campanha. Além disso, apesar de incluir dublagem para as cenas principais, grande parte da história depende totalmente da escrita.

De todo modo, em ambos os casos (texto e fala), os games da série adaptam expressões, termos e figuras de linguagem típicas da cultura popular japonesa (ou norte-americana, na tradução em inglês) em suas respectivas épocas de lançamento.



Quando a imaginação é posta a serviço da ação

Se parece natural pensar em uma ambientação que mapeia parte das regiões reais de Tóquio e em um formato à moda de mangá para a história, certamente não é trivial imaginar um tipo de gameplay de RPG que combine especialmente com esse estilo e conceito de design.

Considerando o tom de shounen e o público-alvo nos períodos de lançamento, uma opção seria investir em algum sistema de RPG de ação. No caso do DS, aproveitando o diferencial das duas telas e da stylus, o que por si só já chamaria a atenção se o combate fosse executado com criatividade. E assim foi o desenvolvimento de TWEWY.




A Jupiter, que já havia desenvolvido com a Square Enix mecânicas únicas de RPG para Kingdom Hearts: Chain of Memories, desenvolveu para TWEWY um RPG de ação inteiramente baseado em diferentes movimentos da stylus na tela inferior do DS. Esse recurso, com grande variedade de habilidades (uma para cada pin no jogo) e com grande dinamismo em tempo real, proporcionou um combate frenético contra vários inimigos diferentes em conjunto com mais um personagem no grupo (party), o Partner, como é chamado no primeiro título.

Por outro lado, NEO teve de repensar as mecânicas da franquia novamente, após já ter sido revisada na versão Remix e Final Remix, uma vez que o Switch já não contava com os mesmos meios que o DS, e tanto menos o PS4, para o qual também se pretendia lançar o game, a fim de atingir um público maior. Para tal, o título contava com nada menos que a direção de Hiroyuki Ito, a mente por trás de vários sistemas de batalha de Final Fantasy, como o ATB (Active Time Battle) em vários títulos e o ADB (Active Dimension Battle) em Final Fantasy XII (PS2).




A solução encontrada manteve um alto dinamismo do action-RPG anterior e também a possibilidade de grupo — e mais, ainda o ampliou para vários membros no grupo e tornou o dinamismo mais caótico. Basicamente, foi empregado um sistema semelhante ao da série Valkyrie Profile, classicamente publicada pela Square Enix.

Assim como naquela série, é atribuída a cada botão uma habilidade específica relativa aos pins equipados por cada membro do grupo durante os combates. Apertando o respectivo botão, a habilidade, que possui tempo de espera, é utilizada em tempo real, às vezes sendo necessário segurar o botão por um tempo, a depender da habilidade.



A sintonia regional e internacional de The World Ends with You

Tanto no sistema de TWEWY quanto no de NEO, há uma experiência diferenciada e caótica de hack ’n’ slash e RPG de ação com algo da personalidade agitada, viva e colorida do estilo visual e musical da série. Embora essas não sejam as únicas opções para desenhar o combate em seu conceito geral, elas são bastante funcionais com a proposta dos jogos.

Entretanto, a despeito de que os cenários de combate, em ambos os casos, sejam vazios, com foco total na interação entre inimigos e os membros do grupo, essas propostas divergem quanto à progressão do aproveitamento dos sistemas em seu level design.

Enquanto em TWEWY sempre há um ou dois membros no grupo, em NEO o grupo cresce gradualmente enquanto a narrativa avança, ocasionando um combate cada vez mais caótico, mas que não necessariamente exige maior coordenação motora, já que passa a ser possível usar mais de uma habilidade (cada qual de um personagem diferente) pressionando o mesmo botão.

Nos combates, assim como no inventário e na narrativa da franquia, os elementos musicais também estão lá. Os inimigos, não à toa, chamam-se “ruídos” (Noises), e há uma referida “dissonância” trágica a ser evitada no mundo do Underground — provavelmente aludindo à “Cultura Underground”. Nos combates, em NEO, há um medidor de Groove que permite aos personagens utilizar em conjunto uma habilidade especial.






Nesse amplo contexto de level design, ambientação, narrativa e trilha sonora, há em seu centro o conceito da cultura popular japonesa e, simultaneamente, parte da Cultura Underground norte-americana, à medida que parte desta já se encontra na cultura pop nipônica e também à medida que ambas são reforçadas na localização dos jogos. Assim, The World Ends with You consolida-se claramente como uma série exemplar em termos de coerência de game design a serviço de proporcionar uma experiência única.

Todos esses elementos de design gravitam em torno do conceito descrito de domínio, tanto regional quanto, de outro ponto de vista, internacional, que estão enlaçados sobretudo por uma variedade de músicas que se coaduna com grande parte do gosto juvenil global. 

O jogador brasileiro em particular é imergido em uma experiência curiosa, especialmente ao jogar em inglês (ao menos com legendas nesse idioma), pois lhe é proporcionado um pouco das culturas juvenis norte-americana e japonesa ao mesmo tempo, e também da própria cultura da internet no que ela tem em comum com ambas as regiões devido à globalização.
 
Revisão: Davi Sousa

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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